Spiritfarer

Spiritfarer

por Ulisses Lopes da Silva

Sobre partidas em paz

Após o sucesso de Stardew Valley em 2016, a tendência de jogos “LifeSim” e fazendinha tomaram os jogadores casuais e hardcore pelo prazer de, tranquilamente, cuidarem de afazeres rurais digitais só vistos anteriormente no Orkut. Tanta influência fez muitos títulos de outros gêneros absorverem esse fator de colheita, melhoria de espaço de vivência, moradia, ferramentas, oficinas e lidar com animais.

Spiritfarer vai além e entrega um simulador de Caronte, que após se aposentar, deixa seu cargo para uma garota chamada Stella e seu gato Daffodil, que pode ser assumido pelo segundo jogador, inclusive.

Indo além da lenda grega, em Spiritfarer você vai ganhar um barco grande e o rio dos mortos se tornou um mar a ser desbravado em busca de almas que ainda não fizeram a travessia para o céu, Nirvana, paraíso ou qualquer nome que você queira dar. Não se sabe por que a jovem Stella foi escolhida como substituta, mas o que podemos perceber é que ela salva pessoas com quem conviveu pessoalmente, como a irmã e o tio, retratados como animais que ainda possuem negócios pendentes para resolver antes de partirem para o descanso eterno.

Spiritfarer é uma obra-prima criada para impressionar e marcar as pessoas, com aventuras que fazem pensar e emocionar, servindo de analogia para como lidar com elas e superar as despedidas inevitáveis.

Quem já assistiu “Ghost: Do Outro Lado da Vida” ou “Gasparzinho” (que na minha opinião, são o mesmo filme) já deve estar familiarizado com estes “assuntos pendentes”, quando uma alma não consegue fazer a travessia por estar presa por um pensamento ou sentimento de dever. Seria responsabilidade do barqueiro dos mortos realizar as vontades para que o espírito possa partir, por isso, conversar com os hóspedes é muito importante, além de alimentá-los e abraçá-los.

Sim, os espíritos são carentes e sensíveis, chegando a serem folgados, mas é exatamente aí que entra a grande sacada dos criadores do jogo, na parte afetiva que gera empatia.

Usando a pegadinha da psicanálise, os criadores fazem você não só sentir apego pelas histórias dessas pessoas, como colocam figuras de bichos no lugar de gente, pois você possivelmente ama mais os animais do que pessoas, principalmente quando eles tem desenhados com um traço bem maravilhoso, lembrando tanto Disney quanto o Estúdio Ghibli.

A vida atarefada de Stella mais parece uma punição, mas não passa de uma referência à nossa, para quem batalha, corre atrás, sofre e se permite agradar e abraçar para fazer a diferença na vida de quem gostamos antes da inevitável despedida

Seu barco é sua fazenda, que tanto abriga esses hóspedes quanto recebe melhorias nas casas, fábricas e alojamentos, ainda navegando por aí atrás de recursos para forjar e, assim, junto da história dramática de ajudar animais antropomórficos que a personagem simpática e seu gato conhecem, gerar empatia. A embarcação lembra um pouco o Going Merry/Thousand Sunny de “One Piece”, e assim, o grande vício está pronto para te dominar através das referências.

Em Spiritfarer, você não morre ou enfrenta inimigos, este é um jogo de suprir demandas e isso inclui em manter os espíritos felizes, ir atrás de matéria-prima e até fundição de minérios. Claro que as tarefas mais clichês como pescar e cozinhar estão inclusas e, enquanto o barco se desloca, é possível fazer muitas tarefas. Os hóspedes ajudam em algumas, em outras assumem oficinas, te guiam para lugares obrigatórios, ensinam a pescar raios, coletar dinheiro, etc.

Sempre há coisas para se fazer em Spiritfarer e como o tempo passa em três turnos divididos em manhã, tarde e noite, você também assume o papel de dono de hospedaria, com até um sino pra acordar o povo.

Só nesta parte, os hóspedes têm seus gostos alimentares e isso influencia no ânimo deles. Por isso, sempre ter os pratos preferidos de cada um prontos é uma boa, pois não se pode animar eles com abraços indiscriminadamente. Como são humanos por dentro, às vezes eles dizem que gostaram da comida, mas você checa o histórico e vê que disseram isso por educação, para não te desapontar quando, na verdade, odiaram.

A Thunder Lotus sempre fez arte desse tipo e a riqueza de detalhes é de cair o queixo, com a intenção de marcar com muita qualidade a memória dos jogadores. Em Spiritfarer, eles capricharam.

Essa é a ponta do iceberg da grande missão de compreender o que aconteceu para que essas pessoas aparentemente simpáticas e gentis estarem presas no belo e paradisíaco Limbo que o estúdio Thunder Lotus criou para nos impressionar.

Falando em impressionante, temos belos desenhos à mão sempre bem animados, como os dois títulos anteriores, Jotun e Sundered. Para quem ainda não conhece, este estúdio sempre fez arte desse tipo e a riqueza de detalhes sempre foi de cair o queixo, com a intenção de marcar com muita qualidade a memória dos jogadores. Em Spiritfarer, eles capricharam. Às vezes, uma simples pescaria à tarde mostra um belo pôr do sol, ou quando chove e temos uma bela noite estrelada. Isso, somado aos efeitos especiais e trilha sonora, faz com que o título mereça uma nota no mínimo 10 nestes quesitos.

Os comandos funcionam bem e você não vai encontrar nenhum bug atrapalhando sua movimentação, seja no barco ou explorando as ilhas atrás de gente complicada para ajudar. O maior incômodo é o ajuste da câmera, que às vezes abre um zoom desnecessário ou não enquadra adequadamente, escondendo partes dos balões de texto. Fora isso, tudo funciona corretamente e existem muitas configurações, evoluções, variações e mini-games para se divertir enquanto constrói sua história como uma barqueira carismática, diferente do anterior.

Se fosse para opinar em melhorias, seria bom ter mais configurações da personagem Stella, nem que fosse somente alteração de cores, ou contagem de dias, e se possível, que a parte de tocar violão para as plantas fosse menor. Fora isso, podemos dizer que esta é mais uma obra-prima criada para impressionar e marcar as pessoas, com aventuras que fazem pensar e emocionar, servindo de analogia para como lidar com elas e superar as despedidas inevitáveis da vida.

Corra, salte duplamente, plane, converse, cozinhe, plante, toque uma música, colha, compre, venda, desafie raios, águas-vivas, dragões, decepções, mentiras sociais, funda metais, serre árvores, pesque, sorria, e no final, abrace. A vida atarefada de Stella mais parece uma punição, mas não passa de uma referência à nossa, para quem batalha, corre atrás, sofre, resolve problemas e se permite agradar e abraçar, com coragem e determinação, para fazer a diferença na vida de quem gostamos antes da inevitável despedida. Quem não se satisfez em vida consegue outra chance se o Spiritfarer fizer a diferença, para não se ficar preso no Limbo.

Claro que a intenção dos criadores não foi dar lição de moral ou pagar de coach da felicidade para quem acredita que o universo conspira ao seu favor, e sim, mostrar que existe todo tipo de gente. As imagens de animais facilitam a comunicação e reduzem o ruído no entendimento mais simples e óbvio possível, que já existia em uma antiga canção que diz: “todo mundo se machuca, todo mundo chora”.

O jogo foi testado no PC, em cópia cedida pela Thunder Lotus Games.