A nostalgia faz coisas engraçadas com a gente. Por mais que certos títulos sejam unanimidades entre o que se considera como clássico, cada pessoa teve sua própria experiência e relação com ele. Para alguns, são as memórias da infância, para outros uma lembrança de companheirismo, enquanto terceiros podem ter outras experiências completamente distintas. Unir tudo isso é uma tarefa das mais difíceis, afinal, como apelar a todo esse público cujo coração bate forte com uma nostalgia de tempos que não voltam mais? Se há uma fórmula mágica, ela foi descoberta pela Dotemu.
A empresa que já tem experiência em trazer de volta clássicos do passado entrega agora sua melhor e, provavelmente, mais ambiciosa obra. Streets of Rage 4 não é apenas um retorno ao passado e um revival celebrado de uma franquia clássica que havia parado nos tempos dos 16-bits, é também um encontro da marca com ela mesma e seus fãs. Um trabalho de amor que finca os pés no passado e o olhar no presente, não apenas permitindo que a gente revisite memórias e criemos novas lembranças, mas potencialmente garantindo que muito mais venha no futuro.
A decisão de apresentar uma sequência em vez do caminho mais fácil de um reboot é, justamente, a pavimentação da estrada para os tempos modernos. Streets of Rage 4 traz todos os elementos da boa e velha briga de rua à qual crescemos acostumados, mas faz atualizações necessárias tanto para se tornar um jogo mais acessível quanto para ampliar seu fator replay.
A principal mudança está no sistema de especiais, que agora é mais completo e variado. Os ataques especiais mais poderosos, agora, são atrelados a estrelas concedidas no início das fases e que também podem ser coletadas pelo cenário, o que limita seu uso. Temos também magias secundárias, que adicionam um fator mais estratégico pela antiga mecânica de consumo de energia, que ganhou uma nova faceta — o HP pode ser recuperado caso você bata nos inimigos ou não apanhe enquanto a barra não encher até o fim, em uma dinâmica semelhante a um parry.
Saber usar tais golpes no momento certo acaba gerando uma vantagem no combate, mas ao mesmo tempo, é um artifício que, se mal utilizado, pode gerar armadilhas para o próprio jogador. Até porque, assim como sempre, os oponentes têm estilos variados e diferentes maneiras de atacar, com o mesmo tipo de ofensiva não funcionando o tempo todo contra eles.
Streets of Rage 4 traz todos os elementos da boa e velha briga de rua, mas faz atualizações necessárias para se tornar mais acessível e ampliar o fator replay.
Ao ir além do pulo e do botão de soco, Streets of Rage 4 amplia seu rol combativo e, com ele, também acaba permitindo a criação de desafios mais interessantes. E ainda temos um botão exclusivo para pegar coisas, que evita acidentes quando tudo o que se quer é descer a porrada, mas nem tanto, já que o comando é compartilhado com o de arremessar uma arma.
Da mesma forma que os oponentes atacam de maneiras diferentes, os bonecos da vez também são variados entre si, muito mais do que jamais foram. Algumas características permanecem, como os ataques estacionários de Axel ou a velocidade de Blaze, mas essa característica também ganhou novas facetas e conversa muito com os cenários, que também possuem desafios ambientas que tornam passar de fase mais fácil ou difícil de acordo com a escolha do jogador.
Avançar em um estágio onde existem buracos ou é possível cair das bordas com Cherry, por exemplo, é mais complicado por ela finaliza seus golpes com um salto para a frente. Floyd tem uma boa amplitude e consegue atingir os inimigos a uma maior distância, mas é incrivelmente lento, o que o torna mais vulnerável a bandidos que atacam de longe. Felizmente, dá para trocar de protagonista a cada fase, e caso o jogador morra, pode reiniciar usando uma nova estratégia.
Nesse sistema, inclusive, uma piscadela do presente, já que Streets of Rage 4 não conta com game over. As vidas e energia são recuperadas ao começo de cada estágio e, caso encontre dificuldades, também é possível usar um sistema de ajudas que troca especiais e renascimentos por uma divisão na pontuação ao final da fase. Com isso, ao lado da tradicional escolha de dificuldade, a Dotemu deixa claro seu desejo de ver todo mundo se divertindo com o jogo, independentemente da habilidade.
São 13 personagens para desbloquear ao todo, e novamente, entra em jogo uma modernidade que não exige dedos mágicos ou uma demonstração de destreza por parte dos usuários. Para liberar os outros lutadores de Streets of Rage 4 basta, efetivamente, jogar o game, com os pontos sendo acumulados de uma zerada para outra. Quando certos patamares são atingidos, um novo boneco é liberado, e jogar com eles pela primeira vez ou escolher dificuldades mais altas, bem como explorar os modos extras, garantem bônus que ajudam nessa evolução.
Não pense, aliás, que as versões retro dos personagens são meras skins clássicas. Aqui, cada versão é tratada como um personagem independente, com seu funcionamento próprio e, no caso dos antigos, ausência dos especiais variados, algo que, por si só, já representa um desafio pois os oponentes são sempre os modernos, criados para a jogabilidade de hoje.
Além das opções retro para Blaze, Alex e Adam, bem como as aparições unicamente pixeladas de Skate ou Shiva, por exemplo, temos a clássica trilha sonora composta por Yuzo Koshiro, que também criou as novas faixas do game. Referências também estão em todos os lugares e remetem não apenas ao passado da franquia, com Roo atrás de um balcão de bar ou arcades com o nome japonês Bare Knuckle estampado na lateral, como também à cultura pop, com menções a “Robocop” e “Oldboy”, apenas para citar alguns nomes.
O cuidado com os detalhes aparece sem cerimônias em cenários como o do museu, um dos mais bonitos do jogo, ou nas menções a um passado que aquecem o coração por meio das artes de Ben Fiquet e Julian Nguyen You, que mostram a relação entre os personagens e o carinho uns pelos outros. Dá vontade de ver tudo animado e se mexendo como aparece na abertura do game, mas não é como se a escolha por gravuras paradas e um estilo a la HQs tenha sido equivocada, muito pelo contrário.
Para liberar os outros 13 lutadores secretos basta, efetivamente, jogar o game, com os pontos sendo acumulados de uma zerada para outra. Explorar modos e dificuldades diferentes é um bom caminho, que traz longevidade ao jogo.
Enquanto prestava atenção em cada cantinho, como em diferentes escolhas de comida para agradar diferentes nacionalidades e até os veganos, a Dotemu acabou deixando de lado alguns sinais clássicos do passado que não conversam tão bem com o presente quanto a jogabilidade. A mistura de habilidades entre os oponentes nem sempre conversa bem, gerando alguns momentos imperdoáveis ou combos infinitos sem que o jogador possa reagir, enquanto os exageros em alguns chefes de fase cria um absurdo divertido.
Há de se citar a sentida ausência de elementos do passado da franquia, como a corrida (que deixou de existir em prol das já citadas variações de personagens) ou os sempre belos especiais evoluídos e arremessos combinados entre os personagens. Relíquias não tão adequadas do passado, porém, retornam, como as roupas deslocadamente curtas de Blaze ou as oponentes do gênero feminino com decotes pronunciados ou roupinhas de dominatrix.
Adiciona-se à fórmula, ainda, um modo multiplayer que funciona surpreendentemente bem para um estilo de jogo que não admite o lag (que é perceptível mas não atrapalha) e os novos modos que variam a jogatina e permitem enfrentar apenas chefes de fase, incluir o fogo amigo ou jogar os estágios fora de ordem para farmar pontos, testar combinações ou simplesmente melhorar as habilidades contra inimigos específicos.
Jogos do estilo beat’em up são celebrados sempre que aparecem, justamente, por não darem as caras com tanta frequência ou se mostrarem presos demais ao passado para ganharem relevância no presente. Streets of Rage 4 faz tudo isso e muito mais, não apenas sendo um belíssimo exemplar desse gênero como fazendo jus ao legado da franquia à qual pertence, a entregando renovada e mais viva do que nunca às audiências de hoje. Que seja o primeiro de muitos retornos.
O jogo foi testado no Switch, em cópia cedida pela Dotemu.