Telling Lies

Telling Lies

por Felipe Demartini

Voyeurismo e conspiração

Gravações irregulares de conversas privadas, vigilância ostensiva por agências de segurança e um acesso indiscriminado a informações pessoas são uma realidade de nosso mundo, em que total privacidade é uma ilusão, a não ser que você esteja completamente desconectado. O escândalo envolvendo o vazamento de um gigantesco conjunto de arquivos desse tipo é o pesadelo da NSA e, também, o ponto de partida de Telling Lies.

O novo game de Sam Barlow, o mesmo criador de Her Story, chega para contar uma trama ainda mais complexa, intrincada e pesada que o jogo anterior, colecionador de prêmios e aclamação pública. Mais uma vez apostando no live action e contando com a presença de atores de Hollywood, o título multiplica por quatro o fator já altamente instigante do que a vista no passado, também por suas mãos.

É, também, o tipo de jogo que deixa o jogador completamente livre para fazer escolhas, selecionar o caminho a seguir e explorar o universo contido em uma tela de computador. Assim como o próprio usuário, a personagem principal de Telling Lies também está diante do PC e, assim como nós, também sabe que há algo de podre envolvendo as relações entre aquelas quatro pessoas. O que aconteceu, exatamente, e quem está contando as tais mentiras do título, entretanto, são mistérios que, agora, precisam ser descobertos.

Passando longe da ação e da grandiosidade dos grandes blockbusters do mercado atual, o game de Barlow nos coloca em uma posição de análise. Usando um software contrabandeado da NSA, navegamos por palavras-chave e assistimos a vídeos que vão compondo uma história contada fora de ordem e sem uma orientação lógica. Telling Lies pode ser facilmente comparado a um quebra-cabeças, no qual recebemos, fora de ordem, peças que nem sempre são o que parecem.

Telling Lies

Contribui ainda mais para essa sensação de fragmentação e mergulho no enredo o fato de as conversas terem sido capturadas de um único lado por vez. Ambas as gravações estão contidas entre os metadados da NSA, é verdade, mas disponíveis separadamente, o que torna muitos dos papos ainda mais enigmáticos na medida em que o jogador pode ver uma pista em algum deles, mas não entender exatamente o que está acontecendo, já que a outra metade está faltando.

Telling Lies multiplica por quatro a já interessantíssima narrativa de Her Story, adicionando também um elemento perturbador e conspiratório ao enredo, além de relações humanas complexas.

Barlow faz amplo uso desse recurso ao incluir pegadinhas, jogos narrativos e sutilezas em um roteiro brilhantemente escrito, com quatro personagens de peso igual, mas que o jogador entenderá apenas depois de muitas horas de vídeo. Acredite, você vai precisar usar um caderno o tempo todo (ou o bloco de notas digital disponível no game) para montar essas peças, e na medida em que utiliza a intuição, notará que ele acabará cheio de rabiscos e pontos de interrogação.

Telling Lies

Como toda a navegação acontece por meio de metadados, ao digitarmos uma palavra, seja ela um nome, local ou substantivo qualquer, somos levados diretamente ao ponto, nos vídeos, em que a menção é feita. De forma a não facilitar demais as coisas, um máximo de cinco resultados é exibido por vez, enquanto é possível avançar ou retroceder as imagens, bem como marcar pontos de interesse.

A presença de atores hollywoodianos também ajuda a aumentar o envolvimento, apesar de muitos deles não entregarem a melhor das atuações, parecendo preguiçosos ou com cacoetes esquisitos.

Entretanto, faltaram algumas questões de usabilidade básicas para facilitar o progresso do jogador. Como caímos diretamente no ponto do vídeo em que a palavra pesquisada é dita, podemos entrar de cabeça em meio a uma conversa, e não existe uma forma rápida de retornar ao início da gravação, sendo preciso fazer isso manualmente. Além disso, os marcadores não permitem nomenclaturas, ou seja, você até pode indicar um vídeo como importante, mas não poderá anotar o porquê.

Felizmente, algumas das questões que fizeram falta em Her Story foram resolvidas aqui, e em uma história tão complexa e cheia de elementos quanto Telling Lies, é ótimo ver a presença de legendas em português. Existem errinhos de tradução aqui e ali, bem como na orientação de datas, mas toda a jogabilidade pode ser feita em nosso idioma, incluindo a busca por palavras, algo essencial em um título narrativo dessa categoria.

Telling Lies

A presença de atores hollywoodianos também ajuda a aumentar o envolvimento, apesar de muitos deles não entregarem a melhor das atuações. É curioso notar que as atrizes menos reconhecidas, como Kerry Bishé (Argo, Red State) e Alexandra Shipp (a Tempestade dos recentes filmes de X-Men), entregam atuações melhores e mais profundas que os outros dois figurões. Isso, também, tem a ver com a participação de suas personagens na história, sendo que uma delas, inclusive, apresenta uma história densa e bastante pesada.

Já o astro principal, Logan Marshall-Green (Upgrade, O Convite) aparece cheio de cacoetes esquisitos, principalmente nos momentos em que está ouvindo a conversa de outras pessoas. Angela Sarafyan (Westworld) soa falsa do começo ao fim de Telling Lies, muito por conta do tipo de personagem que interpreta, mas não apenas por isso.

Telling Lies

A teia dessa conspiração envolve agências governamentais, ambientalismo e terrorismo domésticos. A busca pela verdade tem data, hora e limite para acontecer. Quem jogou Her Story deve se sentir em casa, enquanto quem está chegando agora pode ficar um pouco perdido em um game que demora um bocado para engrenar, mas que ganha velocidade e conquista o jogador na medida em que ele mesmo vai navegando por esse mar de informação.

Nenhum sistema computadorizado, mesmo com áudio, vídeo e metadados, é capaz de descobrir exatamente o que se passa dentro de cada um. Aos poucos, entretanto, percebemos que a maior questão, aqui, são as relações humanas, e vem justamente delas as respostas mais complicadas.

O jogo foi testado no PC.