Uma das maiores forças da série Life is Strange sempre foi a abordagem do mundo real de forma sensível, intimista e, acima de tudo, empática. Em um mundo de jogos dominado por assassinos lendários, soldados habilidosos, cidades dominadas por zumbis e combates em que só resta um, chega a ser curioso que um título, muitos diriam, até banal, chame tanta a atenção.
É uma posição de destaque que a Dontnod merece estar, sem dúvida alguma. Uma temporada e um prequel desenvolvido por parceiros depois, ela volta à carga renovada com Life is Strange 2. Mas, antes disso, temos um pequeno olhar no mundo novo, mas tão reconhecível, com o lançamento gratuito de The Awesome Adventures of Captain Spirit.
Como aconteceu em Before the Storm, a viagem no tempo não tem papel aqui, o que não significa que o game não traga sua dose de superpoderes. O caráter mágico da vez tem a ver com a imaginação do protagonista, Chris, que se imagina como o herói do título e vive sua própria aventura particular em meio a uma casa quebrada e um histórico recente de tragédias.
O coração de The Awesome Adventures of Captain Spirit bate sob a superfície, na história de uma criança que se refugia na própria criatividade para se proteger da dura realidade.
Bonecos de borracha viram um grupo de supersseres, lutando contra os vilões que querem destruir a Terra. O aquecedor de água é o “Monstro do Quartinho” e um boneco de neve é o malvado “Gelomante”, todos a serviço de um grande inimigo chamado Mantroid. É no campo da imaginação pueril, mas incrivelmente complexa de uma criança, que os atos heroicos de Captain Spirit acontecem.
É nesse “mundo da Lua”, também, que se passa boa parte do game e, também, onde estão seus desafios. Há uma boa dose de exploração envolvida, com itens que são encontrados em um lugar da casa servindo para acessar outras áreas, bem como alguns puzzles que envolvem a descoberta de senhas, tudo para levar a saga do personagem principal adiante.
Pensar em The Awesome Adventures of Captain Spirit como uma prévia de Life is Strange 2 ou um prelúdio para o jogo, porém, seria criar as expectativas erradas. Uma boa comparação, aqui, pode ser feita com Begining Hour, a versão de demonstração de Resident Evil 7 – temos um capítulo introdutório ao novo game, que traz informações que o complementarão e também eventos que podem ser citados, mas sem constituir uma parcela efetiva dele – apesar de as decisões tomadas aqui influenciarem as coisas no game final de alguma maneira.
Pensar neste game como prelúdio de Life is Strange 2 seria criar expectativas erradas. O game é uma introdução ao mundo da sequência, que sai em setembro.
É uma amostra da pegada da Dontnod com o novo título, do que ela é capaz de fazer com um motor gráfico repaginado em relação à versão anterior e também de alguns dos temas que serão abordados. E, como já era de se esperar, ela acerta em basicamente todos os quesitos, principalmente no mais importante de todos: o sentimento envolvido.
Da mesma forma que no primeiro Life is Strange, o coração de The Awesome Adventures of Captain Spirit bate sob a superfície. Por trás dos quebra-cabeças a la Survival Horrors do passado e do flerte com a jogabilidade de Flappy Bird, por exemplo, está, mais uma vez, uma história que poderia ser de qualquer um de nós.
Os temas da vez são a dor, a desesperança e a perda. O clima do título é de decadência, de uma nostalgia nada positiva de um passado em que as coisas pareciam melhores mas não mais retornarão a serem como eram antes. A sensação é de querer que as coisas fossem diferentes, mas ao mesmo tempo, compreender que somos impotentes para fazer isso.
Assim como Begining Hour, The Awesome Adventures of Captain Spirit também pode ser finalizado de maneira objetiva. A exploração completa leva cerca de duas horas, mas é possível chegar ao fim dessa história em pouco mais de meia hora. Quem “rushar”, entretanto, vai perder bem mais do que apenas detalhes e informações sobre a história e tudo o que aconteceu com essa família.
Nos minutos iniciais do título, é fácil cair no clichê da subestimação da compreensão de Chris. Fechado em seu mundinho de heróis e vilões, ele parece alheio ao que está acontecendo, seguindo com inocência em uma realidade particular que parece estar caindo aos pedaços. Mas não. Ele sabe de tudo e isso fica claro em seus olhos em um dos momentos reveladores do título, ainda que dentro de seu universo de brinquedo.
Todo mundo tem suas formas de lidar com trauma. Alguns, como eu, mergulham de cabeça no trabalho ou nas horas de lazer para afastar os pensamentos ruins. Outros optam por terapia, remédios, álcool ou até drogas como forma de deixar a dor de lado. Para Chris, esse caminho é a criação de seu mundinho pessoal.
Mas a vida sempre chega, e mesmo em seu universo mental, o protagonista parece incapaz de fugir dela. E quando a realidade bate na porta, às vezes ela está carregando as armas mais dolorosas e pesadas possíveis, com somente um super-herói parecendo capaz de impedir sua ação destruidora. Só que Chris não é o Captain Spirit. Nenhum de nós é. E por mais que a visão de uma criança tenha o que é preciso para absorver a pancada, isso só vai fazer com que ela doa um pouco menos.
O jogo foi testado no PlayStation 4.