Transference

Transference

por Felipe Demartini

O perigo maior está dentro da sua cabeça

A trajetória de Transference é um bocado estranha. Anunciado com a pompa e a circunstância que merece uma parceria entre a Ubisoft e um estúdio de desenvolvimento capitaneado por Elijah Wood, a SpectreVision, o game foi destaque em duas E3s seguidas para, em seu lançamento, meio que desaparecer na obscuridade. Pouco se falou sobre ele após sua chegada às lojas e nem mesmo a própria empresa o divulgou tanto quanto deveria.

O título é definido pela distribuidora como um thriller psicológico e essa é uma palavra que define bem o game. A complexidade da mente humana regem uma orquestra bizarramente interessante enquanto trafegamos por um labirinto de memórias, frustrações, traumas, medos, lembranças boas e momentos definidores, buscando saber o que exatamente aconteceu com essa família.

O problema é que o jogador, no começo do jogo, também não sabe exatamente o que está fazendo, quem é e, acima de tudo, porque está tendo aquela viagem mental. O desígnio básico, logicamente, é seguir em frente, resolvendo enigmas e desvendando os quebra-cabeças apresentados, mas não apenas para chegar ao fim da história que se desenha diante de nós, como também para entender qual o nosso papel em tudo isso.

Vamos preservar intencionalmente os detalhes, mesmo que básicos, do enredo de Transference, pois o jogo é daqueles que fica melhor quanto menos se sabe dele. Explore bastante os cenários e vasculhe todos os cantinhos para encontrar os segredos do game e, acima de tudo, os files de vídeo, que representam a parte mais interessante do título. E boa sorte com a cabeça, você vai precisar.

Construção

Transference

O comportamento de Transference enquanto jogo pode ser comparado ao de uma escape room, as salas cheias de enigmas nas quais os jogadores estão presos e precisam fugir. Isso, claro, se uma brincadeira desse tipo também envolvesse violência, loucura e, por vezes, um passeio entre realidades.

O comportamento é o já reconhecido de games neste estilo, com uma ação servindo como gatilho de outra e habilitando o item necessário para uma terceira, assim por diante. A diferença é que, como estamos trafegando no labirinto conturbado da mente de alguém que não anda batendo muito bem das ideias, há uma imensa fragmentação nesse caminho, com muitas coisas não funcionando como deveriam.

Transference

Os trechos de sobreposição entre o que parecem ser diferentes planos, mas logo percebemos serem algo bem mais soturno, criam alguns dos enigmas mais complexos e inteligentes de Transference. Gerar alterações em um modifica a estrutura de outro, enquanto alguns itens devem ser transportados entre eles para a resolução dos puzzles.

A escolha técnica da SpectreVision também impressiona. Estamos falando, novamente, de um estúdio que trabalha sob o comando de um ator de cinema e, como tal, a escolha foi feita por usar vídeos com atores de verdade no lugar de cutscenes. Quem possui um fraco por FMVs terá bastante a assistir e descobrir, com os vlogs de um dos personagens principais representando alguns dos momentos mais assustadores e impressionantes do título.

Transference

O game da SpectreVision é mais uma daquelas pérolas que, ao que parece, somente um pouco de sangue novo dentro de uma estrutura já reconhecida consegue entregar.

Enquanto isso, o sempre existente abismo entre as imagens gravadas com atores reais e os gráficos de jogo é explicada pela própria trama e a tecnologia envolvida nela. Normalmente, sem detalhes, para preservar a surpresa, mas é interessante ver o cuidado dado pela produtora mesmo naqueles elementos que poderiam ser considerados apenas como uma parte inevitável de qualquer game. Aqui, esse aspecto ganha contexto, o que aumenta a imersão.

E como todo bom game que transforma a tecnologia em horror, absolutamente tudo vem de forma fragmentada, algo que, novamente, impele o jogador a querer seguir em frente e descobrir mais. Nenhuma resposta vem pronta e mesmo os arquivos de vídeos são encontrados fora de ordem, muitas vezes revelando um fato novo, do qual o jogador nem fazia ideia, ao mesmo tempo em que contribui para o mistério que nos leva adiante. Isso, claro, se você souber inglês, pois o título não está localizado para o português.

Requisitos mínimos e recomendados

Transference

Transference foi realizado com o pensamento na tecnologia de realidade virtual. Desde o áudio até os gráficos, passando pela forma como os elementos são dispostos na tela, quase tudo pede os óculos disponíveis para PC e PlayStation 4. O game é plenamente jogável sem eles, mas muito da experiência se perde desta maneira.

Caminha ao lado desse aspecto mais uma herança da bagagem de Wood, que não apenas deu uma levada de filme de mistério ao jogo, como também adotou uma duração parecida. Isso, provavelmente, também tem a ver com o inevitável cansaço ocular gerado pela realidade virtual, mas não dá para não pensar que poderíamos ver mais de Transference se esse não fosse o caso.

Transference

Não que a história seja corrida ou superficial por conta disso, mas são muitas camadas envolvidas e seria interessante ver um maior aprofundamento ou, até mesmo, alongamento nos conceitos colocados. Felizmente, além do game em si, temos os cerca de 20 minutos adicionais proporcionados por The Walter Test Case, uma prequel gratuita lançada antes da chegada de Transference, mas que também serve como um bom extrinha caso você queira mais após os créditos finais.

É uma pena que, por conta da janela lotada de lançamentos em que chegou às lojas e à pouca divulgação de sua chegada, Transference possa acabar passando despercebido. O game da SpectreVision é mais uma daquelas pérolas que, ao que parece, somente um pouco de sangue novo dentro de uma estrutura já reconhecida consegue entregar.

O jogo foi testado no PlayStation 4, em cópia cedida pela Ubisoft.