O mundo de We Happy Few, com exceção dos exageros e do fato de se passar há cinquenta anos, é muito parecido com o nosso. Estamos falando de uma sociedade devastada e quebrada por dentro, que viu nos remédios a única maneira de seguir em frente. Quem vai contra o sistema vigente é caçado como um pária e expulso ou, pior ainda, morto por uma multidão que, simplesmente, não pode ver o diferente diante de si.
Assim como a nossa realidade, o jogo da Compulsion Games também não funciona como deveria, e muito menos, como a gente gostaria. É um título onde existe o que é bom, interessante, inteligente e, principalmente, instigante, características de uma boa distopia, daquelas que dá gosto de explorar; só que tudo aparece de forma mal-acabada e até meio tosca, com uma flagrante necessidade de polimento que acaba jogando tudo por terra.
Ainda mantendo a analogia dos contrastes, então, We Happy Few é como uma alegoria de si mesmo. Da mesma forma que tudo é colorido e divertido sob o efeito de remédios, enquanto escuro e sombrio sem eles, o próprio game também tem seus momentos de excelência entremeados por problemas técnicos dos mais graves.
Estamos em uma versão alternativa da Inglaterra pós-Segunda Guerra Mundial, em um mundo no qual os Estados Unidos jamais se envolveram no conflito e a Inglaterra acabou sucumbindo diante da ameaça alemã. A exceção, entretanto, é Wellington Wells, que acabou livre do perigo por causa de uma coisa que ninguém se lembra muito bem o que é.
Sabe-se, porém, que essa tal “coisa ruim” gerou grande angústia na população, o que motivou a criação da Alegria, ou Joy, no original, uma droga alucinógena que suprime lembranças negativas e faz todo mundo enxergar um mundo colorido. Esse pico de felicidade causa lapsos de memória e uma distorção no senso de moral, mas quem se importa com isso quando o isolamento de Wellington Wells, junto com o uso do medicamento, deram origem a um desenvolvimento sem precedentes?
Em seu segundo e mais ambicioso projeto, a Compulsion Games mostra potencial e, principalmente, uma criatividade incrível. Entretanto, acaba falhando em elementos básicos de jogabilidade e imersão.
Forma-se aí, então, a distopia de We Happy Few. Iniciamos no controle de Arthur, um funcionário do departamento de censura no qual notícias ruins são suprimidas e as boas aprovadas nos jornais do passado. Ao ter contato com as memórias tristes de seu passado, ativando uma área de seu cérebro que parecia estar abandonada, criamos uma resistência à Alegria para, logo na sequência, nos vermos caçados por colegas de trabalho. Não pertencemos mais a este mundo, mas, ao mesmo tempo, vamos descobrir tudo sobre ele.
A trama de Arthur se mistura com a do próprio universo. Na medida em que os acontecimentos do passado do protagonista vão sendo revelados, por meio de itens colecionáveis ou conversas com outros personagens, a verdade sobre o que aconteceu em Wellington Wells também vai aparecendo. E os segredos são terríveis, a ponto de o jogador até entender a criação de uma droga que suprima tudo aquilo.
Outros pontos de vista são revelados na medida em que mais personagens jogáveis são desbloqueados, permitindo, até mesmo, que atos da história de Arthur sejam experimentados novamente. Ele é um dos principais fios condutores, é verdade, mas We Happy Few faz questão de mostrar que a história dele não é a única que importa e, assim como o jovem censor, outros também estão passando por conflitos apesar da aparência jovial trazida pela Alegria.
Todo o enredo é pincelado por momentos sublimes, como o game show que define a reintegração de um habitante à sociedade, ou não, ou os momentos em que os protagonistas se percebem, subitamente, sem a influência do medicamento. Os atos de crueldade dos cidadãos de Wellington Wells ganham um requinte a mais de horror ao serem realizados por trás de uma máscara sorridente.
Tudo é uma mentira, mas, ao mesmo tempo, o terror é bastante real. Assim como poderia ser argumentado por alguns, a Alegria não transforma seus usuários, mas sim, faz florescer um lado de suas personalidades que não apareceria com tamanho destaque caso eles estivessem sóbrios. Em We Happy Few, porém, isso se traduz em perseguição, morte, opressão, isolamento social e preconceito, tudo em prol da conservação do bem-estar social e da manutenção de uma ordem sorridente e feliz, mesmo que as mãos estejam sujas de sangue.
É esse aspecto absurdo, mas ao mesmo tempo, plenamente real, que faz o enredo criado pela Compulsion ser tão interessante. Estamos diante de uma distopia das maiores e mais elaboradas, em um passado que nunca existiu e com tecnologias que extrapolam as nossas. Mas, na medida em que a trama se desenvolve, dá para entender de que maneira o nosso mundo “normal” deu o salto para se tornar o que vemos no game e, pior ainda, até entender um pouco os atos dos viciados nas pílulas de felicidade mágica.
O maior problema do título, entretanto, é percebido quanto ele é, efetivamente, jogado. Aos moldes do novo God of War, por exemplo, We Happy Few alterna momentos que levam a história adiante, com cutscenes, enigmas, lutas e cenas dispostas de forma linear, com segmentos de exploração em um mundo semi-aberto, que traz suas missões secundárias, a busca por recursos e, claro, mais informações sobre o universo.
As semelhanças com a tão elogiada obra da Sony Santa Monica, entretanto, acaba no formato, em si, já que We Happy Few não tem nem um terço do cuidado dedicado pela desenvolvedora americana. Para tristeza dos que acreditavam e, principalmente, daqueles que se encantaram pela história do título, o game é bugado, travado e cheio de arestas a serem polidas.
Os gráficos não são dos mais avançados do mundo, mas ainda assim, vão exigir um bocado de poder de performance de sua máquina. No PC, a impressão é de que ele está sugando muito mais do que deveria, enquanto no PS4 e Xbox One, quedas na taxa de quadros por segundo aparecerão a todo momento, principalmente quando muitos personagens estiverem na tela (ou seja, quase o tempo todo). Em todas as plataformas, texturas somem e reaparecem diante dos olhos, assim como NPCs e até itens espalhados pelo cenário.
Na medida em que a trama se desenvolve, dá para entender de que maneira o nosso mundo “normal” deu o salto para se tornar o que vemos no game e, pior ainda, até entender um pouco os atos dos viciados nas pílulas de felicidade mágica.
A interação com os personagens, inclusive, é o que mais deixa a desejar. Em seus primeiros momentos, We Happy Few nos incentiva a conversar com todos e explorar tudo, mas ao fazer isso, percebemos que os diálogos entre os personagens secundários dificilmente estão conectados e parecem oriundas de um sistema aleatório. Uma pergunta feita dificilmente será respondida, enquanto uma declaração sobre um assunto receberá uma reação sobre outro, sem qualquer sentimento de unidade.
O mesmo vale para as próprias falas dos protagonistas. A dublagem, em si, é incrivelmente bem trabalhada e mostra talento, tanto no texto quanto na interpretação, mas também sofre com essa falta de sentido. Arthur, por exemplo, pode mostrar remorso ao nocautear um inimigo para, no soldado seguinte, soltar uma piada jocosa sobre o mesmo tema, sem que atos tenham ocorrido para mudar essa postura. Novamente, parecemos estar diante de um sistema aleatório, uma alternativa das piores para um mundo tão rico em contexto.
Assim como cuidado e polimento, também falta variedade em mais de um aspecto de We Happy Few. É só explorar o mundo para perceber que existem poucos modelos de personagens e também de roupas, alternados entre si (algo estranho, pois todos têm nomes e, na medida do possível, alguma personalidade individual). Tem muita gente mascarada no game, mas também existem muitos cidadãos que não as utilizam e a sensação é de estarmos encontrando sempre as mesmas pessoas.
Todos os guardas são altos e magros, assim como os membros de gangue, sempre baixinhos, bem como todas as senhoras idosas de Wellington Wells se parecem com a rainha da Inglaterra. Os vestidos de bolinha eram a febre da época, mas aqui, estão em todos os lugares, assim como todos os homens são meio barrigudinhos. Novamente, falta aos encontros cotidianos o mesmo carinho dado à criação do mundo.
Explorar, também, é tarefa repetitiva e complicada, mas não pela escassez de recursos. Em seu início, We Happy Few deixa claro que ficar sem comer e beber não mata, mas permanecer hidratado e alimentado libera vantagens especiais. Gazuas e pés-de-cabra são itens essenciais para seguir em frente e desbloquear cofres e novas passagens, liberando mais itens e opções de criação.
No dia a dia, entretanto, o jogador vai se cansar de encontrar trapos sujos, comida podre, chá, uísque e grampos de cabelo. A sensação, por outro lado, é de que o game não entrega itens de cura, armas variadas (as nossas, inclusive, sempre parecem bem menos eficazes que as dos oponentes) e, principalmente, a Alegria necessária a todos os cidadãos de Wellington Wells.
Passar pelos trechos urbanos, em que cidadãos anestesiados artificialmente estão vivendo suas vidas, é tarefa das mais tortuosas. É incrível ver, por exemplo, como toda uma população pode se voltar contra você por estar sem seus remédios ou vestindo roupas rasgadas, parecendo não pertencer àquele local. Os gritos da turba, as pedras voando e os alarmes soando criam um ambiente completamente aterrorizante e desesperador.
Muito pela manada que vem atrás de você, mas também pelos bugs, como as paredes invisíveis que impedem a fuga, os NPCs e sentinelas que brotam do chão ou os ataques que podem vir, até mesmo, através das paredes. As falhas aparecem até mesmo nos momentos de calma, novamente, com o personagem sendo visto mesmo enquanto escondido ou com armas que não carregam em nossas mãos ou desaparecem completamente quando são mais necessárias.
Ao mesmo tempo, porém, passar despercebido por tais trechos é praticamente impossível pois, além de notarem que você não tomou seus remédios, eles também perceberão caso você tente se esgueirar ou passar correndo. Não há para onde fugir e o suprimento da Alegria parece ainda mais escasso que o dos itens de recuperação. O jogador estará sempre machucado, desarmado, na mira de todos e à beira da morte, mesmo que com o inventário cheio de itens.
We Happy Few é uma alegoria de si mesmo: da mesma forma que tudo é colorido sob o efeito de remédios, enquanto sombrio sem eles, o game também tem seus momentos de excelência entremeados por problemas técnicos dos mais graves.
Os bugs e falhas de polimento aparecem, ainda, no trabalho de localização, cheio de erros de tradução e frases que aparecem em inglês, no sistema de detecção de pressionamentos de botões e também na geração de NPCs. Eles podem surgir dentro de edifícios inacessíveis ou enterrados no chão, além de, às vezes, morrerem “de susto” quando se conversa com eles. É triste, porém, quando isso acontece com o portador de uma missão secundária, que ficará para sempre no menu sem jamais poder ser completada.
Em seu segundo e mais ambicioso projeto, a Compulsion Games mostra potencial e, principalmente, uma criatividade incrível. Como frisamos, o universo de We Happy Few é interessante, instigante e absolutamente aterrador, com aquele pezinho na realidade, mas, ao mesmo tempo, apresentando uma distopia das mais tresloucadas e absurdas. O tipo de coisa que, felizmente, não é real, mas poderia muito bem ser.
Entretanto, simultaneamente, a empresa falha no arroz e feijão, entregando uma experiência que é mais interessante quando lida ou comentada do que efetivamente jogada. Como game, We Happy Few é bugado, problemático e, principalmente, repetitivo. A cada cutscene ou elemento de enredo descoberto, ficamos intrigados e queremos seguir em frente, apenas para termos essa vontade destruída pelo primeiro bug ou mecânica falha apresentada.
Passando longe da imparcialidade que muitos exigem de um review, mas que é inexistente fora das discussões malucas das redes sociais, We Happy Few é um game que este que voz escreve queria ter curtido, assim como os milhares de apoiadores do projeto, ainda no Kickstarter, onde mais de US$ 260 mil foram arrecadados. No mundo real, porém, não há pílula que nos faça relevar as falhas gritantes de um título cheio de potencial, mas que parou por aí mesmo.
O game foi testado no PC, em cópia cedida pela Gearbox Publishing.