O maior charme da série Assassin’s Creed sempre foi a mistura de conceitos históricos, religiosos, supersticiosos e conspiracionais para a criação de um universo rico e repleto de referências. Mais do que personagens carismáticos e trailers empolgantes, foi essa amálgama que colocou os assassinos entre as franquias mais importantes (e lucrativas) da última década.
Algumas dessas influências são bem evidentes. Falar das raízes históricas ou mesmo da teoria dos Deuses Astronautas é ser repetitivo, já que esses temas são básicos à própria trama. Porém, isso não quer dizer que não haja outros subtextos escondidos em meio a essa enorme salada. É, por exemplo, o caso da Magia do Caos e da filosofia Telemita que norteia a saga.
Isso é algo que jamais foi apresentado abertamente nos games e pode até surpreender em um primeiro momento o jogador mais incauto. Porém, é inegável a presença desses aspectos esotéricos no cerne da saga, principalmente porque essas ideias fazem parte de um lado pouco lembrado da verdadeira Ordem dos Assassinos.
Entendendo a Magia do Caos
Antes de entrarmos na relação com Assassin’s Creed, precisamos entender o que é a tal Magia do Caos. O conceito é um sistema baseado exatamente na quebra de paradigmas. Se religiões e rituais mágicos têm todo um aspecto cerimonial e ritualístico bastante demarcado, a Magia do Caos vai na contramão ao dizer que nada disso é necessário para obter aquilo que se deseja. É quase como se ela dissesse que nada daquela burocracia fosse necessária, apresentando um modelo muito mais aberto e focado nos resultados.
Como muitos acreditam que a definição básica da filosofia é que a regra é não ter regras, isso faz com que cada magista possa criar seus próprios símbolos com base em seu universo de referências. Assim, você pode pedir força para Kratos ou coragem para Lara Croft da mesma forma que um cristão ou um muçulmano faz isso com Deus e Alá. E isso não quer dizer que você acredita na real existência dos personagens de vídeo games, mas no que cada um deles representa.
É claro que essa é apenas uma camada do que representa a Magia do Caos, mas ela é importante por tocar naquilo que é um dos motes desse modo de pensar: a ideia de que “Nada é verdade, tudo é permitido”.
A origem da Ordem
Como você já deve saber, a Ordem dos Assassinos que tanto vimos nos jogos é um conceito real, ainda que com uma origem um pouco diferente daquela que a Ubisoft nos apresentou. Criada em meados do século XI na região onde hoje é o Irã, ela tinha como principal objetivo a propagação de uma corrente religiosa derivada do ismaelismo, uma corrente esotérica existente dentro do Islã. Como explica a consultora em antiterrorismo Amy Zalman, isso fez com que a Ordem fosse um grupo dissidente dentro da própria dissidência — o que a tornava extremamente malvista pela sociedade da época.
O responsável por toda essa divisão foi Hassan-i Sabbāh, conhecido como o “Velho da Montanha” e criador da Ordem. E a figura de Sabbāh é bastante controversa. Considerado um grande guerreiro, político e estrategista, ele também dominava conhecimentos pouco comuns para o período, como alquimia, quiromancia, astrologia e algumas ciências ocultas e textos de outras religiões. Alguns historiadores apontam uma proximidade com cultos herméticos, o que reforça os mistérios relacionados à ritualística da própria Ordem que teriam sido absorvidos pelos templários e outras sociedades secretas posteriores. Como os assassinos lutaram contra e junto com os cruzados em vários momentos, muitas das práticas acabaram sendo exportadas para a Europa e, consequentemente, para o restante do mundo.
Só que o principal legado de Sabbāh não foi apenas a arte da matar ou a criação do termo “assassino”, mas a ideia de que “Nada é verdade, tudo é permitido”, apontada por historiadores como o principal mote de seus seguidores. E, por ser uma organização iniciática, é difícil apontar o significado por trás dessas palavras. Porém, não faltaram tentativas de interpretá-las.
Os assassinos e o caos
Em um primeiro momento, o lema dos assassinos pode ser interpretado como um grito de liberdade. Afinal, tudo é permitido e você pode fazer o que quiser, não é mesmo? Na verdade, não — e é aqui que entramos na relação entre Assassin’s Creed, a verdadeira Ordem dos Assassinos e a Magia do Caos.
Uma das leituras mais aceitas do credo dos assassinos foi feita exatamente por Friedrich Nietzsche em A Genealogia do Mal. No livro, ele discute a existência do que chama de além-do-homem, um indivíduo que não precisa de uma verdade imposta de fora para viver. Isso significa que todos os rótulos que temos são construídos pelo mundo à nossa volta e não verdades absolutas. E, se essas verdades não existem, não existem restrições que nos limitem. Assim, qualquer coisa é possível e verdadeiro.
Esse pensamento é muito similar à filosofia telemita apresentada por Aleister Crowley, um dos ocultistas mais famosos do início do século XX. Ao dizerem que “Faze o que tu queres, pois há de ser o todo da Lei”, os telemitas destacam que a natureza não carrega valores morais, ou seja, a relação entre certo e errado ou de bem e mal não existe. Assim, você é livre para fazer o que quiser, pois tudo é natural a partir desse ponto de vista.
Isso significa que, para ser livre de verdade, é preciso ir além dessa verdade construída. Em Assassin’s Creed, essa lógica é apresentada na luta dos assassinos pela verdadeira liberdade, mesmo que isso seja algo que traga sofrimento. Enquanto os templários tentam estabelecer uma ordem a partir de uma formatação da sociedade, os heróis lutam para fazer com que o mundo seja realmente livre dessas amarras. O livre-arbítrio é um ponto central dentro da saga e mostra bem a importância do “Faze o que tu queres” telemita e do “Tudo é permitido” caoísta.
Por outro lado, a filosofia da Magia do Caos aparece dentro da série de uma forma um pouco mais sutil, mostrando a quanto o bem e o mal são maleáveis e variam de acordo com a verdade construída à sua volta. É tudo uma questão de narrativa. Para os assassinos, a busca por essa liberdade justifica o rastro de mortes que o jogador deixa pelo caminho, já que você luta pelo que julga ser certo. Por outro lado, os templários também acreditam estar lutando por um bem maior, mesmo que isso signifique colocar a humanidade sob uma única vontade.
E, de certo modo, ambos estão corretos. Só que é aí que está o grande segredo por trás da Magia do Caos: exatamente por ser tudo permitido, é preciso saber que é sua responsabilidade lidar com as consequências de seus atos. E é nesse embate que reside a guerra presente no jogo — e aquela que travamos todos os dias.