A saga da Invader Studios é a dos sonhos de muitos fãs de franquias que também compartilham o amor pelo desenvolvimento de jogos. Em 2015, o pequeno time de designers italianos decidiu tomar, para si, uma tarefa há anos pedida e que parecia um sonho distante: criar o tão sonhado remake de Resident Evil 2. Eles ousaram ir além e, por conta disso, também chegaram muito longe.
Não apenas a equipe viu seu projeto chamando a atenção do mundo pela internet, mas a própria Capcom também os convidou para conhecer, em primeira mão, a nova versão do clássico e, mais do que isso, dar seu feedback sobre o projeto. Da mesma forma, a empresa japonesa deu sua benção para o que, depois, viria a se tornar a Invader Studios, uma empresa ainda independente e pequena, mas que nascia com uma forte bagagem e parceria.
Os dois projetos dos sonhos, dos fãs e dos desenvolvedores, chegaram em 2019. E depois do remake de Resident Evil 2, é hora de os jogadores retornarem novamente ao mundo do Survival Horror com Daymare: 1998, que nos remete a um passado que, no início do seu desenvolvimento, parecia distante. Certos pesadelos, porém, nunca morrem, e ainda bem que é assim.
Há muito de Resident Evil 2 em Daymare: 1998, mas da mesma forma, há muito de Daymare: 1998 em Resident Evil 2. Certos pesadelos nunca morrem, e ainda bem que é assim.
Logo no começo, dá para perceber que o título da Invader Studios segue em um sentido inverso do restante dos atuais. Em vez de aplicar ares do passado a uma dinâmica contemporânea, o game de terror parece atualizar sistemas de 20 anos atrás com uma roupagem moderna, investindo menos no tiroteio e no susto para abrir espaço a uma evolução cadenciada, itens posicionados estrategicamente e inimigos que podem surpreender mesmo quando o jogador já souber como lidar com eles.
A confiança será uma aliada problemática em Daymare: 1998, e mesmo na dificuldade mais baixa, onde há mais conforto na munição apresentada, se sentir à prova de tudo é bastante perigoso. Os zumbis são lentos, mas mordem forte, e um grupo deles pode ser extremamente perigoso, exatamente como aprendemos nos primórdios do primeiro PlayStation. E o personagem, seja ele um agente de elite ou um guarda florestal, não é necessariamente o mais ágil dos protagonistas.
Os controles tanque retornaram, algo que muita gente jamais achou ser possível em uma abordagem de câmera livre sobre os ombros. Os comandos são modernos e manobrar os personagens não será difícil, mas eles possuem hitboxes largas, enquanto inimigos podem dar uma rápida investida para a frente, o que faz com que cada desviada de um zumbi seja um momento de sorte ou revés, muito pelo fato de os sistemas do título jogarem contra você.
Da mesma forma, há certa artificialidade na lentidão de algumas movimentações, criadas para validar certas mecânicas aplicadas em Daymare: 1998. Como forma de tornar o gunplay um pouco mais realista, a Invader Studios optou por uma abordagem cuidadora quanto aos recarregamentos de munição, que não podem ser feitos o tempo todo e exigem que o jogador esteja sempre preparado e com inventário gerenciado antes de qualquer confronto.
Quem jogou Resident Evil Outbreak sabe mais ou menos como funciona. Armas são carregadas a partir de pentes, que também precisam ser carregados com caixas de balas a partir de combinações feitas no inventário. A munição também pode ser aplicada diretamente à arma da mesma forma, mas há um detalhe aqui: os inimigos não param enquanto se está no menu e os carregadores são finitos, devendo ser guardados no bolso para que o processo possa ser feito durante os combates e enquanto o jogador se movimenta para escapar de ataques.
Carregar a arma rapidamente significa pente no chão, e se você não retornar para buscar, pode se ver em maus lençóis adiante. É possível fazer isso com mais cautela, guardando o carregador, mas este é um dos tantos movimentos artificialmente tornados mais lentos pelos desenvolvedores de Daymare: 1998, como uma forma de adicionar tensão onde, simplesmente, não era necessário. Ou você vai realmente acreditar que um guarda florestal consegue recarregar uma espingarda, bala a bala, mais rapidamente que um soldado de elite com um fuzil, guardando o pente vazio no bolso?
O amor pelos clássicos não apenas do terror, mas da indústria de 20 anos atrás como um todo, transparece, praticamente, em cada sala de Daymare: 1998.
Esse é apenas um exemplo de um game que, muitas vezes, parece ter personagens e inimigos debaixo d’água. Dá para entender o que a Invader decidiu alcançar aqui, e ela consegue, na maioria das vezes, mas Daymare apresenta uma estranheza na jogabilidade que leva algumas horas para ser deixada de lado, ainda que não seja exatamente um fator que fará as pessoas abandonarem o game.
Ainda sobre a dificuldade, vale a pena citar um certo desbalanceamento das opções iniciais, uma vez que somente é possível escolher entre 8 ou 80. Daymare: 1998 tem apenas dois ajustes, o modo iniciante, que ainda apresenta desafio, mas traz abundância de munição e mais recursos, ou o hardcore, com todo o desafio no máximo e a quantidade de itens no mínimo. Quem está acostumado com Survival Horror pode desejar um meio-termo inexplicavelmente indisponível.
O amor pelos clássicos não apenas do terror, mas da indústria de 20 anos atrás como um todo, transparece, praticamente, em cada sala de Daymare: 1998. Mais do que um simples jogo de terror, o que temos aqui é uma verdadeira declaração aos anos 1990, não apenas pela abordagem antiga, mas também pelas dezenas de influências que podem ser encontradas praticamente a cada sala.
Com uma micro equipe, a Invader Studios conseguiu aproveitar um potencial que não seria demonstrado caso este fosse, apenas, um fanmake de Resident Evil 2, como planejado originalmente.
O título é linear em sua essência, escondendo alguns segredos na forma de passagens secretas ou portas opcionais, mas de maneira geral, não é daqueles games que vão te travar. Por outro lado, mais do que a busca por suprimentos, a bagagem da Invader Studios fará com que você olhe cada detalhe do cenário com atenção e até mesmo lamente as passagens rápidas por ambientes venenosos, onde não é possível permanecer por muito tempo.
E as referências vão além das óbvias, focadas em Resident Evil ou Silent Hill, por exemplo. Logo no começo do game, temos um enigma a la “Jurassic Park” e, mais adiante, toda uma ala de hospital dedicada a Final Fantasy VIII. E estes são apenas dois exemplos dos mais incríveis, com outros surgindo de maneira sutil, mas perceptível.
A qualidade dos cenários e, principalmente, o ótimo trabalho de iluminação, brilham mesmo em um jogo passado em lugares fechados e escuros na maioria do tempo. Mesmo com poucos inimigos e uma progressão cadenciada, o trabalho visual e de fotografia impressiona. Daymare ainda dá um jeito de nos assustar eventualmente, com um posicionamento de inimigos inteligente, mas que também aproveita da lentidão artificial dos controles, já citada.
Esse trabalho gráfico apurado contrasta com o estilo “bonecão de cera” dos protagonistas. Dá para perdoar o texto brega e travadão, mais um fruto de um game cujas raízes estão no horror noventista, mas ouvi-lo saindo da boca de personagens com feições travadas e cara de jogo velho de PC não deixa de impressionar negativamente, fazendo rir quando não deveríamos e constituindo momentos hilários no mal sentido. Percebe-se que a ideia é ser tosco mesmo, mas há um limite para tudo.
O enredo de Daymare também não é dos mais elaborados, mas apresenta algumas ideias interessantes. Para os fãs de longa data de Resident Evil, esse é o mais próximo que chegaremos de um game principal com HUNK, por exemplo, enquanto a transição de personagens e a ligação entre protagonistas diferentes soa interessante, mesmo que não surpreendente. É um sopro legal de ar fresco, por mais que todos os outros aspectos do game permaneçam iguais.
Ao longo da experiência, dá para perceber que há muito de Resident Evil 2 em Daymare: 1998, mas da mesma forma, há muito de Daymare: 1998 em Resident Evil 2. Os dois jogos permaneceram unidos e é bom ver que o game da Invader Studios chega oito meses depois de uma de suas maiores inspirações, à qual também inspirou, e justamente em um momento no qual os fãs da série da Capcom soam um bocado insatisfeitos com ela.
Há de se considerar, claro, a diferença entre as propostas, principalmente em valores de produção e tamanho da equipe. Não que esse seja um elemento para desculpar as falhas de Daymare: 1998, mas pelo exato oposto, mostrar o tamanho do triunfo obtido pela Invader Studios, que com uma micro equipe, conseguiu aproveitar um potencial que não seria demonstrado caso este fosse, apenas, um fanmake.
Que bom que a Capcom, finalmente, refez Resident Evil 2 e atendeu ao desejo de mais de uma década da base de fãs. Melhor ainda pois o lançamento do título nos trouxe pérolas como esta que, apesar das falhas consideráveis, ainda consegue chamar a atenção como uma boa oferta em um ano que vem sendo bastante interessante para os fãs de terror. Vida longa ao Survival Horror.
O jogo foi testado em cópia cedida pela Destructive Creations.