Um dos grandes prazeres de ser um game designer é criar coisas. Nada se compara com ver uma ideia acontecer diante de outros e causar algum tipo de sentimento, e jogos são uma das formas mais convidativas para isso.
No entanto, com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades, e criar algo bom não é tão simples. Na real, iniciar qualquer coisa não é algo fácil. Perceba, até mesmo as grandes empresas de jogos pecam em muitos detalhes que acabam até ofendendo parte de seu público. Claro que dificilmente você irá agradar a todos, mas, pelo menos, é extremamente importante que você possa defender o que fez. Deixarei já claro que esse texto trará três teorias, sendo que duas dão base para a última. Assim, não tinha como ser curto, primeiro por ser um assunto extenso mesmo e, segundo, por que eu adoro falar sobre isso.
Para se criar um mundo, é bom começar de algo que já exista – imagine fazer isso sem ter nenhuma referência! Sugiro pegar o nosso planeta, ele é um local repleto de momentos históricos fascinantes e até de transformações físicas espetaculares, que sem dúvida servirá como um começo.
Nosso mundo possui quatro bases estruturais muito fortes que o fazem ter sentido:
- Humanos, que têm necessidades fundamentais iguais ao redor de todo o mundo: comer, dormir, procriar, nascer, morrer, enfim, tudo o que acarreta sermos mamíferos bípedes dominantes. Isso o planeta de alguma forma, como com a criação de itens para suprir essas necessidades;
- Sistema social: as pessoas precisam falar para se entender e existem meios de comunicação como escrita e interpretação de imagens. Daí surge a arte, elaborações de padrões, leis e também se criam itens para se suprir essas necessidades;
- Sistema econômico: você pode ter pensado rapidamente em dinheiro ou capitalismo, mas de certa forma, de maneira simplificada, o sistema econômico do mundo é o escambo, só que distorcido e transformado em algo bem diferente. No básico, se troca uma coisa por outra e também se criam itens para agilizar esse processo. Questionável ou não, tudo gira em torno disso;
- Ecossistema: terra, água, plantas, animais, cadeia alimentar, enfim, a natureza como um todo, mas também, a raridade de elementos pode ser encaixada aqui. Pense na existência do vibranium no universo Marvel, ou naquele mineral bizarro que motiva uma organização a querer devastar um planeta inteiro, no filme “Avatar”. Veja as naves espaciais, máquinas de guerra e de extração que foram feitas para esse fim.
Esses são os quatro pilares do nosso mundo, mas talvez você consiga pensar em outros ou fragmentar esses em muitos. Alguns teóricos sugerem que, sempre que for necessário criar algo fantasioso, que, pelo menos, uma dessas coisas continue imutável ou que mudanças sejam feitas através da comparação.
Provavelmente você já viu uma infinidade de livros e filmes que trazem uma evolução diferente do nosso próprio mundo, contando histórias de um passado sido diferente, ou no caso de uma catástrofe que acontecesse agora, como seria o mundo e seu futuro? Ou mesmo, um humano levado para um planeta desconhecido e, usando a Terra como referência, interpreta esse local, ou espécie, totalmente novas.
São ferramentas simples e úteis para se apresentar um lugar diferente. Meio clichê, claro, mas funcional. Afinal você, como autor, sabe o que está acontecendo, mas o espectador não tem a mínima ideia e terá que aprender muita coisa para começar a também viver um pouco nesse novo ambiente.
É importante entender que você não está fazendo um documentário no melhor estilo NatGeo ou Discovery, e sim, contando uma história que se passa em um mundo fictício. Assim, além de interessante, o universo deverá afetar sua narração de algum mundo, do contrário, seria extremamente desnecessário ter esse trabalho todo para se criar algo tão grandioso.
Então, como começar?
Primeiro, de fato, você não precisa estar criando um mundo inteiro, redondo e flutuante, ao redor de alguma estrela ou outra coisa que sua imaginação criou. Talvez você esteja concebendo só um lugar, uma cidadezinha, um espaço onde sua história se passa. Como no filme “A Vila”, temos ali toda uma sociedade cuja história acontece dentro de si mesma, com uma trama gigantesca envolvendo esse pequeno povoado.
Delimitando seu espaço de atuação, fica mais fácil saber o que é necessário criar. Mas vamos pirar, entrar na caixa de papelão que chamamos de imaginação e viajar por terras nunca dantes visitadas. Podemos pegar cada um daqueles pilares e alterar algo e ver o que acontece, talvez, por que não, sugerir como eles evoluirão.
Vou deixar aqui aberto para você brincar com a ideia, seja criativo e crítico, perceba como é muito natural cair em sensos comuns rapidamente, como raças reptilianas, materiais ultra raros que acabam mobilizando o mundo economicamente ou seres com formas de comunicação telepática. Enfim, quanto mais você pensar nesse assunto, mais perceberá como os mundos de sucesso acabaram usando e abusando desse recurso. Assim, convido-o a pensar fora da casinha, literalmente.
Só para dar alguns gatilhos à sua mente: às vezes é fascinante perceber como esses pilares estão conectados entre si, como, por exemplo, as pessoas ficarem doentes e a cura estar no próprio ecossistema, e esse fato gerar um padrão social entre as pessoas e até mesmo acarretar questões financeiras. Agora, imagine se nesse mundo ninguém fica doente? Ou que não exista a necessidade de dormir, ou a forma como as pessoas nascem é diferente: como isso afetaria o mundo como um todo? É curioso como alterar uma única peça no nosso mundo já transforma grande parte da estrutura econômica e social.
Peço desculpas, mas não vou criar um mundo de exemplo, com um pouco imaginação você irá criar mil deles, não serei eu o seu guia. Para fins de exemplo, sugiro ler os livros da série Discworld, do Terry Pratchett, cuja imagem serve de abertura para essa coluna. Ele cria um universo fantástico, fascinante e repleto de elementos únicos que tornam ele sempre mais e mais incrível.
Quero entrar aqui em um detalhe mais apurado no negócio, sei que para muita gente esse conceito dos pilares pode ser algo novo e explodidor de mentes, mas é uma formula bem velha, tipo a Jornada Mitológica do Herói, a qual falaremos na próxima coluna sobre personagens. É importante entender alguns conceitos, mas é bom se aprofundar e usá-los direito, então tente criar alguma coisa, altere pontos, ou tente pensar fora disso. O importante aqui é conseguir contar sua história sem que esse mundo acabe te sufocando. Como uma fogueira acessa que precisa de oxigênio para queimar, mas se você colocar demais, ela acabará apagando.
Verosimilhança
Essa é a base de tudo e o grande segredo de se criar um mundo bom. Podemos “traduzir” essa palavra para: fazer tudo ter sentido em si mesmo. Isso é, de fato, muito importante. Tente digerir esse conceito e aplicar em mundos que talvez você goste como de Star Wars, Harry Potter ou Senhor dos Anéis. Veja como eles se esforçam para explicar a si mesmos.
Aprofundarei nesse assunto um pouco mais antes de ser generalista. Entrarei na parte polemica do desenvolvimento de jogos, na complexa discussão de gênero. Falar sobre essas questões sempre acaba trazendo o ponto de que esse ou aquele jogo está sendo sexista, ou seja, usando algum dos sexos, normalmente o feminino, de maneira ofensiva ou desagradável. Se você já está de mimimi só com essa introdução ao tema, respire, eu estou do lado do desenvolvedor moderno. Ou seja, daquele que pensa que games assim fedem e são feitos de maneira preguiçosa.
O importante aqui é que tudo faça sentido em si mesmo, logo não faz sentido uma armadura mostrar o umbigo ou ter decote. Para ser direto, não proteger o corpo. Sejamos lógicos. O conceito é o mesmo, independente do sexo.
Cito esse tradicional exemplo das armaduras por que, dele, podemos apoiar todas as outras coisas. Por que uma mulher esperaria pacientemente em uma torre? Ele tem medo do dragão? E daí? Desde quando coragem, astúcia e inteligência são características masculinas? Melhor do que contar a história do cara chegando para salvar a princesa, não parece mais interessante mostrar como ela resolveu seus próprios problemas? Isso, só como metáfora. Sempre que você pensar em colocar uma personagem feminina no seu jogo, ou melhor, sempre que você pensar em por qualquer personagem no seu jogo, pergunte se ela faz sentido com ela mesma e o mundo.
É um problema todas as princesas do reino estarem presas? Ou só haver heróis homens? Não, não é algo errado, desde que exista uma explicação e ela explicação seja evidente. Vamos criar um exemplo: um mundo onde mulheres são escravizadas por homens cruéis e um grupo de heróis sai para salvá-las. É um plot de história que faz sentido, mas ainda soa sexista. Por que a história não podia ser sobre uma mulher dessas escravizadas que luta pela própria liberdade? Ou de uma que conseguiu fugir desse cerco e, reunindo um grupo de bravos guerreiros (já que seu objetivo é fazer personagens homens), retorna para salvar as outras?
Percebe? O importante é fazer sentido. Vamos nos aprofundar nessa história. Por que esse grupo de homens não aceita ou não faz parte do grupo de dominantes? Por que eles têm um espirito heroico! Se for isso, por que eles não estão mortos, ou só decidiram tentar salvar essas garotas agora? Afinal, pelo que entendi, essas mulheres estão sendo escravizadas faz tempo, e a sociedade toda acabou sendo mudada por completo por causa disso. Acredite, não seria fácil um grupo tirano raptar todas as mulheres de um mundo inteiro! Ao ponto de não haver mais nenhuma delas por aí para lutar por si mesmas.
Então, talvez, esses homens heroicos sejam homossexuais que, por serem do sexo masculino, não foram mortos, mas por não serem do sexo feminino, não foram escravizados. Talvez eles vivam em uma feliz sociedade à beira do reino tirano. Então, temos agora uma heroína valente em busca de vingança e que quer salvar as outras, e um grupo de heróis homossexuais que motivados por uma causa nobre que se colocam contra a tirania!
Não custa nada tentar pensar longe do padrão homem branco médio, ou seja, que não é nem rei, nem plebeu. Criar personagens diferentes disso gera uma questão chamada representatividade, que significa fazer um grupo de pessoas se sentir representadas em uma obra. Algo em que nossa sociedade falha como um todo. Tanto que movimentos criando manequins com o layout de deficientes físicos geram um impacto na nossa forma de ver as coisas. Lembro que li na internet o questionamento de “não existe Paquita negra”, uma afirmação que eu nunca tinha parado pra pensar, mas que, sem dúvida, reflete na representatividade negra.
Agora, você quer muito mesmo fazer um personagem masculino, então voltemos ao plot. Nesse mundo de mulheres escravizadas, um dos homens machistas percebe que está errado e luta contra os seus antigos líderes para salvá-las! Parece uma boa ideia, alguém rompendo com suas barreiras morais para lutar pela mudança. Mas ainda é sexista, afinal você coloca que a mulher não consegue resolver seus próprios problemas. Percebe? Nesse mundo as mulheres estão escravizadas a muito tempo, elas aceitariam isso de boa por quanto tempo? Um grupo de mulheres jamais pensaria em mudar a situação das próprias vidas?
Esse mundo precisa de uma protagonista feminina, da mesma forma que precisa de um desses homens machistas se convertendo à causa. Mas o cara deveria ser um NPC, o guarda que deixa o portão aberto e facilita a luta, e não o que luta por elas, do contrário, o status quo da sociedade não mudou. A mulher sempre será submissa, só trocando uma submissão tirana para outra de dever um favor para outro homem.
Como desenvolvedores, é fundamental nos atermos a isso. Podemos mudar o mundo e a forma de as pessoas interpretarem suas vidas. E para isso, só precisamos fazer nosso jogo ter sentido nele mesmo, e que esse mundo seja criado sobre algo que acreditamos. Agora, se você acredita que matar/espancar pessoas e o extermínio de seres humanos seja algo digno e que o outro ser desconhecido não merece seu respeito, por favor, pare de pensar assim. Obrigado.
Uma História, Um Arquiteto, Uma Revolução
Isso tudo que eu disse, sobre pilares e verossimilhança, serve para entrar em uma questão mais moderna de se pensar a criação de mundos. Esse seu universo precisa ter um passado. Algo aconteceu antes dele, fez ele ser como é e essa base do passado movimentará o espirito da história para o futuro.
No nosso mundo real, vivemos duas grandes guerras em sequência, uma pior do que a outra, e hoje fazem quase 100 anos do final de uma delas. Ainda sentimos como ela reflete e mobiliza o tempo presente. Elas mudaram as divisões políticas e geográficas, geraram avanços tecnológicos absurdos e paramos de pesar tudo em ouro para usar o dólar como base da economia.
Além disso, mais relevante que tudo é que, espero eu, conhecendo o estrago e sofrimento que essas guerras causaram, outra como aquelas não está nos planos de nenhuma nação. Ou seja, as mentalidades das pessoas são afetadas por eventos históricos, mesmo anos após o acontecimento deles.
Cito as guerras só para exemplificar como o passado muda nossa vida, e como pensar na história do mundo é importante. Tentar explicar os dias de hoje de maneira que ele faça sentido é extremamente complicado se você ignorar completamente a Guerra Fria, por exemplo. Por sua vez, é absurdamente impossível falar dela sem citar as guerras mundiais, e também precisa se compreender as Grandes Navegações e o processo Iluminista que, claro, também puxa para o debate um pouco sobre…
Ao pensarmos em alguns momentos históricos, normalmente eles trazem uma espécie de arquitetura, por causa dos avanços científicos e tecnológicos que, quando se tornam públicos, acabam afetando diretamente a vida das pessoas. Perceba como existem muitas casas parecidas em determinados períodos. Isso não é falta de criatividade, e sim, prova de que se inventou uma forma fácil e barata de se fazer moradias, sem que se perca muita qualidade. Esse fácil e barato vai evoluindo, até que temos uma quantidade absurda de prédios parecidos. Na medida que a tecnologia for mudando e ficando barata, ela afeta o todo.
Assim, temos o papel da referência. Lembra que no começo eu comentei que é muito difícil criar algo do nada? Pois bem, sempre existirá alguém que já fez algo muito perecido com o que você quer fazer. Chamaremos essa base anterior de Arquiteto.
O Arquiteto é alguém que fez algo antes de você e definiu algumas coisas. Alguém que conseguiu inventar uma forma de ter banheiros dentro da casa, e pronto! É até difícil pensar na vida sem eles.
Se você pirar na referência das referências, quem foi o primeiro a fazer a primeira coisa do além, antes de qualquer um e de todos, o arquiteto dos arquitetos, o gênio que criou algo do nada? Talvez você encontre deus. Mas não, a primeira de todas as bases de referência será sempre a necessidade. Até hoje, coisas novas acabam surgindo através da busca das pessoas em solucionar um tipo de problema especifico.
Com isso, voltando aos quatro pilares, sempre que você mudar qualquer coisinha deles, logo notará que isso gera uma necessidade, e são elas que mudaram o mundo. Assim temos uma história, o passado que justifica seu presente e projeta seu futuro. Temos um Arquiteto, que define um padrão tecnológico, coisas simples e baratas de serem feitas e que servem de referência para as outros objetos. E com a soma disso tudo, teos a revolução.
Ela é um processo natural na vida humana e existem diversas em nossa história. A necessidade de mudança é algo vital, e pessoas incomodadas acabam gerando reivindicações para o mundo em que vivem. Você ler um homem heterossexual defendendo alguns pontos do feminismo é algo mais possível de se ver nas últimas décadas do que seria nos anos 40. Isso faz parte de um processo revolucionário.
Agora, isso dificilmente será natural e acontecerá sem incomodar a própria sociedade, afinal, por mais que o espirito da mudança seja natural do ser humano, nada é mais forte que o comodismo. Muitas pessoas aceitam a sociedade como é e, por isso, resistem que ela seja diferente.
É muito cômodo para os homens que as mulheres ganhem menos, ou sejam tratadas de maneira submissa e vistas como um objeto sexual. É uma coisa a menos para se pensar e a sensação de ser dominante sobre a espécie é algo confortável. Quando alguém quer que ele se mexa e faça as coisas de maneira diferente, sem dúvida vai causar um choque. É como ser acordado, existem alguns que acordam despertos e alertas, e outros que reclamam e não querem encarar que um novo dia começou.
Assim, a dica para criar um mundo poderoso e forte é que ele tenha um processo revolucionário acontecendo nele, algo que queira fazer o mundo mudar. Isso mostra que existe uma vontade orgânica, viva, e que esse mundo vem de algum lugar e está indo para outro. Algo fascinante de se observar ou fazer parte. E, mais importante, faz o jogador sentir que fez a diferença ou, ao menos, finalizar o jogo e continuar vivendo naquele mundo.
Veja como o série de livros “A Fundação”, de Isaac Asimov, mexe com a vida de quem lê. Eu mesmo sempre acabo voltando àqueles planetas, imaginando como tudo aconteceu e como está agora… Ou mesmo os livros “1984”, “Admirável Mundo Novo” e “Fahrenheit 451”, livros distópicos que explodem sua cabeça e te fazem pensar como seria viver ali e o que você faria no lugar daqueles protagonista revolucionários.
Então crie seu mundo, seja criativo e crítico. Crie um que faça sentido nele mesmo. Pense no nosso como referência e perceba como existem coisas sem sentido nele como, por exemplo, a modalidade de futebol americano feminino ser composta por mulheres de biquíni. Percebe como isso reforça a ideia idiota de que homens usam armaduras completas e mulheres usam roupas de baixo como proteção? Agora, a pergunta é: por que isso é feito deste jeito e por que, de certa forma, é aceito em nossa sociedade?
Vamos fazer jogos melhores e mais poderosos. Um bom mundo é aquele que pulsa e ensina algo. Recomendo fortemente jogar Deus Ex: Human Revolution. Preste atenção em como esse universo foi construído e como tem coisa acontecendo antes do protagonista aparecer nele. Boa sorte e bora fazer jogo!