Com lançamento marcado para esta terça-feira (21), Mass Effect: Andromeda vem sendo um dos assuntos mais comentados desde a semana passada. Mas pelos motivos errados. O que começou como piada e uma triste constatação dos níveis de animação de um game lançado em pleno 2017, para plataformas da atual geração, se tornou rapidamente um palco de assédio, machismo e demonstração do que existe de pior na internet.

Na última sexta (17), o jornalista Ethan Ralph publicou uma matéria que, teoricamente, teria tom de denúncia, mas acabou se tornando um festival de machismo e ofensas. No site que edita, o The Ralph Retort, ele afirmava que a responsável pela tragédia seria Allie Rose-Marie Leost, que se intitulava “animadora facial líder” na equipe de Mass Effect: Andromeda.

A citação se tornou uma caça às bruxas, com Ralph levantando dúvidas quanto à competência da profissional, afirmando inclusive que ela teria usado favores sexuais para conseguir o cargo. No texto, ele nem mesmo chega a chamar Leost pelo nome, citando-a apenas como “uma cosplayer” sem experiência no mundo dos games – algo que, a bem da verdade, ela realmente não possui em seu currículo, onde consta background em animação facial para curtas-metragens.

O que se seguiu foi uma verdadeira série de ataques a Leost, com direito às sempre tradicionais ameaças de violência, insinuações sexuais e escrutínio digital. Ignorou-se, por exemplo, o fato de que, em um jogo do tamanho de Mass Effect: Andromeda, centenas de pessoas estão envolvidas e, muito dificilmente, é possível atribuir a um único indivíduo qualquer aspecto da produção, seja ele positivo ou negativo. Ralph já tinha o seu alvo, e aparentemente, era melhor ainda que fosse uma mulher.

Para aumentar ainda mais o ódio, um dos argumentos foi o fato de que Leost, em um vídeo de demonstração de sua experiência, exibiria claramente os dizeres “eu odeio homens”. Tal imagem, entretanto, foi tirada de contexto, pois a frase antecede a apresentação de um dos trabalhos da animadora (também retirada do ar após os ataques), justamente, uma animação chamada “I Hate Men”. Na era da pós-verdade, isso de nada importa, apenas a vontade de atiçar o fogo e adicionar um caráter político, transformando o ódio em mera retribuição.

Um comunicado oficial da Bioware, que deveria acalmar os ânimos, jogou ainda mais lenha nessa fogueira. No fim da tarde de sábado (18), a empresa publicou em seu Twitter um comunicado assinado pelo diretor geral da empresa, Aaryn Flynn, afirmando (sem citar nomes) que a reportagem que identificava um antigo funcionário da EA como líder do time de desenvolvimento de Andromeda é falsa. A desenvolvedora também taxou como inaceitável os ataques individuais que vinham sendo feitos pelos jogadores.

No mesmo dia, Leost removeu sua página oficial no Facebook e alterou a bio de seu perfil no Twitter, não atualizado desde fevereiro, para remover qualquer citação à sua posição no time de Andromeda. O status dela na equipe permanece uma incógnita, uma vez que não é possível encontrar seu nome nos créditos. Postagens em redes sociais, entretanto, indicavam que ela faria parte do EA Capture Lab, uma sucursal de Montreal, no Canadá, especializada em captura facial.

O esclarecimento foi o único comentário da Bioware sobre o assunto, enquanto Leost ainda não falou sobre o caso. O mesmo, entretanto, não pode ser dito sobre Ralph, que respondeu de forma inflamada à publicação da desenvolvedora, afirmando que eles estariam mentindo para esconder as falhas de Mass Effect: Andromeda, transformando a situação mais em um caso de assédio do que em uma “avaliação” sobre o que levou ao desastroso resultado visto no jogo.

Em uma segunda publicação, ainda, o jornalista citou diversas publicações de personalidades envolvidas em causas feministas, com ofensas a nomes reconhecidos dessa luta. Além disso, dispara “argumentos clássicos” como o quanto as contratações por diversidade arruínam a indústria de games e, consequentemente, o hobby de todos nós, o fato de não odiar mulheres pelo fato de que seus jogos favoritos também foram produzidos por uma e, ao final, afirmar que existe toda uma galera concordando com ele e rejeitando o que outros veículos “cavaleiros da justiça social” afirmam.

Same old, same old

Mass Effect

Não é como se casos como esse fossem uma novidade na indústria. Recentemente, por exemplo, Cristina “Olakristal” Santos foi a personagem principal de uma matéria que sobre a realidade das mulheres no mundo dos games, seja no universo competitivo ou casual. O grande estopim da “polêmica” foi o fato de o texto da BBC afirmar que elas seriam a maioria entre os jogadores.

Vieram, então, argumentos já conhecidos, como o fato de a pesquisa Game Brasil 2016, que chegou ao total de 52,6% de mulheres no público gamer, ter considerado também aquelas que jogam em plataformas mobile. Ou seja, elas não seriam “jogadoras de verdade”. Enquanto isso, Santos passava por escrutínio, tendo seu perfil na Xbox LIVE e canal no YouTube esmiuçados de forma a derrubar a noção de que ela seria alguém importante nestes meios.

O próprio Andromeda também sofreu com esse tipo de comentário no passado recente. A dubladora Fryda Wolff sofreu ataques por causa de suas posições feministas ao ser anunciada como intérprete da personagem principal do game, enquanto a própria Bioware viu, no passado, a roteirista de Dragon Age 2 e Mass Effect 3, Jennifer Hepler, sair da empresa após receber duras críticas e assédio dos “fãs” das franquias, depois de críticas negativas com relação às tramas dos títulos.

https://www.youtube.com/watch?v=m7ADHqDevmE

É curioso notar, entretanto, que campanhas desse tipo não ocorrem com o mesmo fervor quando o alvo é um homem. O caso mais recente é o de Manveer Heir, acusado de ser racista por conta de opiniões publicadas no Twitter. Também acusado de arruinar Mass Effect: Andromeda após ser fruto de uma contratação por “cotas”, entretanto, ele não teve seu currículo analisado sob a lupa feroz da internet ou sua vida sexual virando fruto de comentários de fãs ardilosos.

Tentativas de difamá-lo até existiram aqui, mas os comentários foram bem mais brandos e, muitas vezes, colocavam em dúvida sua influência negativa sobre o título. A Bioware parecia, inclusive, ser um alvo maior do que o próprio Heir, com a cobrança de explicações da empresa quanto às opiniões de seu empregado e preocupações relacionadas a uma visão negativa da franquia, em relação às afirmações feitas por ele nas redes sociais.

Independente do gênero, campanhas de assédio são um caminho extremamente nojento a se seguir – e nesse caso, até mesmo jornalistas adepts das opiniões “ácidas” chegaram a afirmar que as acusações feitas a Loest foram extremas. Em um jogo do tamanho de Mass Effect: Andromeda, acusar uma única pessoa de ser a causa de todo o mal não apenas é incorreto, mas também desonesto.

E quando até alguém relacionado a comentários mais ferrenhos está falando isso, você sabe que se está indo longe demais. Principalmente quando se leva em conta que temos alguém claramente se aproveitando da atenção dedicada a ele, por um motivo pífio, para fazer acusações, destilar mais ódio e, claro, angariar mais seguidores com ideias semelhantes. É o contrário da famosa frase “stop making stupid people famous”, algo que poderia até invalidar nosso próprio artigo por aqui.

Mas é um assunto que é importante comentar. Temos aqui um jogo bastante aguardado, que, infelizmente, não saiu como as pessoas esperavam. Enquanto a voz da sensatez diria que se trata de um problema sistêmico dentro da Bioware, de falta de cuidado ou simplesmente incompetência dos envolvidos, outros preferem marcar um alvo, tomar alguém como bode expiatório, mesmo que isso nem faça sentido levando em conta a lógica desse mercado. O importante, mesmo, é aproveitar a oportunidade e, como o próprio Ralph já citou diversas vezes como argumento, acumular visitas no site – para ele, provas de que está certo.

Principalmente quando falamos de uma franquia como Mass Effect, reconhecida por ser inclusiva – permitindo, por exemplo, relacionamentos homossexuais e não prendendo o jogador a um gênero específico de protagonista –, a coisa fica ainda pior. E em meio a memes, críticas acertadas, mas talvez precoces, e muito ódio, o tão aguardado novo título da franquia da Bioware começa, cada vez mais, a ser lembrado de forma negativa.

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