Para mim, o grande trabalho do game designer está no começo do jogo. Acho tão importante que não acredito que tenha que ser a primeira coisa a ser feita. É ali que o jogador irá entender e sentir o carisma da aventura. É o começo da hipnose que irá prendê-lo e o motivar a seguir em frente.

Frase dita na abertura do Half Life 2

Frase dita na abertura do Half Life 2 pelo misterioso G Man.

A primeira vez que ouvi esse termo, “hipnose”, relacionado à arte foi em uma entrevista com o gigantesco Gabriel Garcia Márquez, autor colombiano de “Cem Anos de Solidão”, um de meus livros favoritos. Nela, o escritor comenta que o fluxo de leitura é algo sutil, e manter o leitor absorto na história exige ritmo, técnica e, às vezes, até exageros para se conseguir fazer não sentir as horas de imersão. Até mesmo a métrica das palavras é importante. Claro que um trabalho tão minucioso quanto esse rendeu ao autor um Nobel. cem-anos-de-solidao-garcia-marquez

Só para ver o quão foda esse cara é, saca só as primeiras linhas de “Cem Anos de Solidão”: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. Gênio. Se você não ficou instigado para seguir lendo esse livro até o final, me permita aprofundar.

Pense que existe um momento presente, e dele, muitos anos depois, diante de um pelotão de fuzilamento, um coronel (imaginamos que ele, já que sabemos sua patente, está diante no sentido de estar dando ordem aos fuzileiros) havia de recordar aquela tarde remota, ou seja, antes desse tempo presente em que estamos em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Gelo como sendo algo desconhecido.

Foda.

Mas por que estou falando de literatura? Primeiro, por que existe muito mais séculos de produção literária do que décadas da existência dos video games. Segundo, para sugerir um conselho: não ache que todas as suas referências para se fazer jogos têm de vir de outros games. Existem muitas outras áreas no mundo que podem te ajudar a criar uma experiência melhor, porém, claro, video games são únicos e, assim, é sempre bom ter um vocabulário de títulos atualizado e apurado.

Entenda, isso que Gabriel Garcia Márquez fez pertence ao mundo literário. Não existe como filmar, pintar, fotografar, musicar ou fazer um jogo com esse começo. A literatura tem suas liberdades de técnicas únicas, sendo esse o grande motivo pelo qual qualquer adaptação de uma mídia para outra será sempre ruim, ou obrigará alterações grotescas que podem, as vezes, produzir algo novo e agradável. Mas sabemos que nem sempre é assim.

A grande questão aqui é que o começo te diz muita coisa, e faz você querer saber mais. Por que ele está diante de um pelotão de fuzilamento e por que estava pensando em gelo? Como assim diabos alguém que não conhece gelo? Esse é o começo da hipnose, você ainda não sabe, mas já está elaborando teorias e tentando reconstruir a história antes do autor seguir a diante.

Esse processo de criação de um começo de uma obra é fundamental. Poderia citar diversos exemplos, como o filme “Magnolia” ou “Cães de Aluguel”, os sons iniciais de “Smoke On the Water” e “Stairway to Heaven”, enfim, existe muita questão de gosto, mas certos começos simplesmente te pegam pela mão e dizem que o caminho será legal.

Hoje em dia parece que poucos roteiristas se preocupam com isso. Várias vezes, alguém me indica uma série nova para assistir já explicando que “tem que passar pelos 3 primeiros episódios antes de ficar boa”. Que preguiça é essa? O começo tem que ser bom, que tolice começar uma obra pela pior parte.

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Fez tem um começo redondinho e bem animado. Um ótimo exemplo para jogos simples com mecânicas únicas.

Fazer um jogo com um começo sedutor deve ser fundamental, mas não é uma tarefa tão simples. Teoricamente, eu não preciso ensinar um cara a ler quando ele abre “Cem Anos de Solidão”, não preciso ensinar alguém a ouvir quando coloco o disco do Deep Purple para tocar, muito menos ensinar alguém a enxergar diante de um filme. Claro que um conhecimento mais aprofundado de como as coisas são feitas, ou ao menos uma base histórica sobre esta arte, ajuda e muito a compreender as coisas como elas são, mas a sensação humana de se sentir maravilhado não se ensina. Fazer jogos não permite essa regalia, você sempre terá que ensinar alguém a jogar.

Tutorias em texto são um saco. Sério, seja criativo, se livre disso.

Tutorias em texto são um saco. Sério, seja criativo, se livre disso.

A facilidade dos novos tempos

Existem estudos que apontam que os tempos estão mudando, jogar videogame está se tornando algo natural do ser humano. A compreensão intrínseca de que tenho o controle da história e sou eu a conduzir o progresso, conceito só possível por ter diante de mim, literalmente, um controle físico. Essa percepção não é só culpa dos jogos, mas também dos computadores, celulares e dos layouts de interfaces com as quais nos deparamos cotidianamente.

Para nós, que jogamos desde criança, isso é algo muito comum. Eu sei esmagar os botões e ver na tela algo acontecer e, assim, descobrir o que fazer e como fazer. Não há problema algum nisso. Mas é somente agora que está se formando uma geração de adultos que entende o que é um video game, e mais, uma geração majoritária de crianças, entre meninas e meninos, que jogam com muita frequência. Os jogos não são mais como eram na minha infância, um brinquedo. Hoje não é incomum ver ele na sala, e não guardado em uma caixa em cima do guarda-roupa que, sempre que você fosse jogar, teria que instalar com a promessa de recolher tudo depois. Compare aquele roxo e cinza do Super Nintendo com as cores da última geração. O videogame está ganhando espaço dentro da casa.

Ainda assim, games não são uma forma passiva de entretenimento, algo que os torna únicos e complexos. Se o jogador não fizer nada, o jogo não fará nada por ele e, com isso, comumente, o jogo deverá ensinar o jogador a jogar.

Existe muita coisa a ser dita no começo

A complexidade do começo se perde quando você está lidando com um gênero estabelecido e sua história é clichê. Você é o herói e o vilão é o inimigo mais poderoso do jogo. Você está criando um FPS ou rogue-like. Enfim, como eu disse antes, está se formando uma geração que, ao ver um começo tradicional, já sabe exatamente o que fazer e, por jogarem muita coisa, já sacam rapidamente que tipo de jogo estão jogando e irão repetir as funções operacionais já estabelecidas antes. Como no caso de plataforma, eu sei que irei para a direita, irei pular e terei algum tipo de ataque. O resto é experimentar como isso afeta o mundo do jogo.

Todo jogo plataforma começava assim, personagem na esquerda da tela indicando que o caminho é para a direita, em lugar completamente seguro para testar os botões do controle.

Gosto de pensar nesses começos comuns como sendo os “era uma vez” dos contos de fada. Era uma vez uma princesa. Pronto, foda-se a personalidade dela, o reino, quem é sua família, nada mais importa. Já sei que a história será sobre ela, e ela vai passar por confusões e tudo dará certo no final, de alguma forma. É ruim usar o “era uma vez”? Não. Na minha opinião, todo clichê é meio bosta, mas em termos de fazer jogo, funciona. Muitos e muitos títulos usam isso até hoje e se dão bem justamente por não precisarem explicar muita coisa ao jogador.

Mas veja jogos como Fez, Deus Ex, Zombi, Tomb Raider. Existem algumas coisas que você precisa entender, tanto do mundo em que você está entrando quanto das mecânicas que você irá lidar ao longo do jogo, em alguns casos até da personalidade da protagonista, para entender as decisões que ela tomará ao longo da aventura. Normalmente, para solucionar essa enxurrada de novas informações, o game começa bem sutil, fazendo você entender como anda, atira, e só depois você se depara com desafios com essas mecânicas simples. Ao entender isso, você será recompensado, tudo parece feliz. Depois uma nova mecânica é inserida, e o mesmo processo se repete, desafios, mistura de mecânicas como ter que dar uma cambalhota, pular e escalar, entre outras situações. E assim vai. Até que chega um momento em que você aprendeu tudo e o jogo começa de verdade.

Conhecer esse gráfico do livro Flow é fundamental para qualquer Game Designer

Conhecer esse gráfico do livro “Flow” é fundamental para qualquer game designer

Saber que o jogo está fazendo isso as vezes me cansa, mas entendo o processo escalar da aprendizagem. Ele está me ensinando a velocidade dos botões, os comandos básicos, algumas combinações. Existem alguns jogos que você não consegue passar sem fazer um movimento super avançado. Como em Teslagrad, onde para passar de uma das salas você deve pular da parede, pegar um campo de força para ser arremessado para cima e, no último instante, usar o dash no ar. Se você errar qualquer um desses movimentos, cai e tem que tentar tudo novamente. Claro que isso é feito em um campo seguro, sem espinhos no chão, monstros de tocaia e tudo mais. Porém, no futuro, essa combinação complexa de movimentos tem de ser seu recurso natural para se safar dos problemas.

Complicar as coisas no começo é uma forma de ter certeza que o jogador entendeu o que é para fazer, mas é uma decisão arriscada. Alguns jogadores podem chegar nessa parte do Teslagrad, tentar algumas vezes e pensar “esse jogo não é para mim”, desligar e nunca mais voltar. Algo extremamente triste, você perdeu um jogador que não saberá mais sobre toda experiência que você teve o maior trabalho para criar.

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Um dos pontos positivos do Teslagrad é que, mesmo sendo um jogo bem difícil, existem recompensas visuais lindas e faz tudo valer valer a pena .

Decisões assim pesam nas definições de como o jogo vai começar. Alguns não querem que você corte as cenas iniciais pois acham muito importante que você entenda a história, pois sem ela, momentos passar desapercebidos ou a missão não será absorvida pelo jogador. Porém, muita gente odeia não poder pular as cenas iniciais. Qual a melhor alternativa? Depende do game que você está fazendo. Ninguém se importa do porquê do Flappy estar se dando tanto trabalho para voar desajeitadamente por entre os canos.

Claro que você não precisa ensinar tudo ao jogador no começo. Todo momento em que algo novo for aparecer no jogo, comumente, tudo voltará a ficar absurdamente fácil e novamente haverá um lugar seguro para se ensinar a nova mecânica. De volta a todo o processo lento de ensinar, combinar mecânicas e depois voltar ao jogo. É possível, com uma boa história, inserir esses novos ensinamentos sem perder o feeling, mas é difícil. Lembro do reboot de Tomb Raider, onde depois de muito tempo de jogo, chegar em uma floresta cheia de tirolesas meio escondidas, algo novo.

Fiquei brincando nelas só para achar itens secretos. Um tempo depois, caí em um acampamento noturno, repleto de guardas, cachorros e armadilhas. Foi bem abrupto, para mim a parte mais difícil do título. A única forma de avançar com certa segurança era usando as tirolesas. Achei interessante essa maneira de tornar as coisas difíceis aplicando uma mecânica nova sem me ensinar direto de maneira aprofundada, muita coisa eu fui aprender morrendo e tentando novamente. Depois, o recurso se tornou uma das coisas mais comuns e agradáveis do jogo. Claro que isso só ocorreu por eu já ter jogado mais de quatro horas e não ia desistir do meu progresso tão facilmente.

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Saber como ensinar o jogador a jogar é um grande dilema para qualquer game designer e exige sentir que as coisas estão caminhando direito. Um dos conselhos que John Romero nos dá é que a primeira fase é um grande momento do jogo, e assim, esse primeiro contato do jogador com a aventura deve ser a última coisa que você tem que fazer. A produção de um jogo é algo extremamente flexível, e nem tudo que você decidiu no começo estará nele. Algumas decisões de arte irão mudar ao longo do processo, você acabará entendendo melhor o jogo na medida em que ele é feito.

Sem dúvida, o maior trabalho para se fazer é depois de pronto. Com tudo feito, você começa a olhar para todo o projeto reparando em pontos de melhoria. Com essa experiência toda que você adquiriu desenvolvendo, criar esse começo será absurdamente mais fácil e produtivo, podendo até inserir menções ao futuro da história.

E lembre-se, é muita inocência acreditar que o jogador irá começar a jogar seu jogo e vendo que é ruim seguirá jogando por acreditar que irá melhorar. Depois do começo do jogo, todo o resto é repetição de mecânicas, o jogador sabe disso, se a hipnose não for feita no começo, ninguém irá passar do início. Uma das grandes sacadas de jogos como Megaman e Metroid é mostrar para você que logo surgirão novos poderes e, com eles, novos desafios. A hipnose da progressão, você ainda não sabe o que irá vir, mas sabe que será muito legal.

Daria para seguir falando muito mais e citando muitos exemplos. É um tema que me fascina muito e que sempre me atento quando começo a jogar algo novo.  Mas faça esse exercício, qual foi o melhor começo de jogo que você já viu? Boa sorte e bora fazer jogos!

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