O segundo game da série, ao lado de Resident Evil 3, possuem caráteres de clássicos praticamente iguais. Lançados com cerca de um ano de diferença entre si, no final dos anos 1990, os games marcaram a primeira experiência de muita gente com a série da Capcom e são presenças constantes nas listas de preferidos de muitos fãs. 20 anos depois, a empresa retorna a aplicar essa dinâmica, esperando, também, resultados semelhantes.
É difícil falar do novo game sem citar seu antecessor, que chegou em janeiro de 2019. Estamos falando do mesmo incidente, a infecção viral que dizimou a cidade fictícia de Raccoon City, vista pelos pontos de vista de personagens diferentes, mas também do mesmo momento histórico, em que a franquia se volta às próprias raízes em uma tentativa de chegar a uma identidade “nova-velha” e se reencontrar com os fãs. É um caminho que vem sendo seguido com bastante sucesso desde 2017, quando Resident Evil 7 foi lançado, mas que, agora, encontra suas primeiras capotagens reais.
Antes de mais nada, é importante deixar claro que, como já fez duas vezes antes, a Capcom aposta na ideia de reimaginação ao recontar a história de Resident Evil 3. Ela evita, até mesmo, usar a palavra remake, apesar de este ser o termo usado pela base de fãs para se referir ao jogo. Vemos, sim, a mesma história de Jill Valentine tentando sobreviver ao Nemesis e recebendo a ajuda de Carlos Oliveira em uma cidade dominada por zumbis e outras criaturas da Umbrella, mas contada em um novo formato que, também, permite à Capcom tomar suas liberdades criativas.
Resident Evil 3 tem a visão mais brutal e realista do incidente em Raccoon City. Ao mesmo tempo, faz decisões questionáveis em seu segundo ato e traz mudanças que não vão agradar os fãs de longa data.
Há o lado bom e o ruim nisso, resultando em uma experiência inconstante. Visualmente, Resident Evil 3 é um deleite aos olhos, com a Raccoon City mais bonita e interessante já mostrada entre as diferentes visões que já foram dadas à cidade. Ela, que sempre foi um personagem da epidemia tanto quanto Jill, Carlos ou outros protagonistas dos demais games, também aparece aqui contando histórias que se desenrolam na cabeça dos fãs enquanto eles observam os sinais da tragédia.
Pode ser um sinal de nossos tempos, ou uma conexão deste que escreve com a cronologia da série como um todo, mas não foi possível passar pelos cenários sem pensar um pouco no que aconteceu ali antes da passagem de Jill. Ao ver um carro que invadiu uma loja, um ônibus sobre uma pilha de corpos ou adentrar uma casa de família em busca de suprimentos e encontrar alguns zumbis lá dentro, não dá para não pensar na história daquelas pessoas que não tiveram a mesma sorte ou não possuem a mesma habilidade de sobrevivência da ex-policial.
Tais detalhes, que já eram um dos destaques do original, ganham vida nova nessa nova versão de Resident Evil 3. Com a força da RE Engine, o motor gráfico que tornou os jogos recentes da Capcom altamente fotorrealistas, a empresa entrega uma visão violenta e brutal do incidente de Raccoon City, dando a devida dimensão à cidade e, também, ao terror que tomou conta dela. Não existe mais a sensação de que estamos passando por becos e vielas do título antigo, ao mesmo tempo em que a linearidade e o aspecto de clausura é mantido pela destruição plena que vemos ao redor dos personagens.
Trazendo de volta, também, uma diferença que já existia entre os dois games originais, o remake de Resident Evil 3 convida o jogador para o combate. Como no final dos anos 1990, são diversos os momentos em que Jill, Carlos e os outros se veem em situações de extremo perigo, mas com os recursos suficientes para lidar com isso. Grandes cenas de ação não-interativas exibem todo o poder visual do título e da tecnologia de captura de movimentos impressionante da Capcom, enquanto o chumbo grosso dá a tônica de momentos que não necessariamente transformam o título em um shooter ou game de ação, mas que dão, sim, mais elementos para o jogador reagir.
É preciso tomar cuidado com recursos e munição, mas nem tanto, já que o game é bem mais generoso com relação a isso. Nemesis também aparece mais vezes enquanto estamos na cidade, e usa diferentes armamentos e estratégias para atacar, refletindo um dos aspectos mais geniais do antecessor — a ideia de que, mesmo fortemente armada, Jill está despreparada para enfrentar essa ameaça implacável.
Mudanças na jogabilidade acompanham esse sensação, e da mesma forma, dão ao jogador mais capacidade de lidar com os problemas maiores que são apresentados. A esquiva, se bem aplicada, salva vidas, mas pode constituir uma armadilha perigosa se mal utilizada, enquanto o sistema de pólvoras é expandido e dá mais liberdade ao jogador na criação de pequenas estratégias de acordo com o estilo de jogabilidade, a arma preferida e a necessidade de cada momento.
A aura de que algo de muito ruim pode acontecer o tempo todo, mas mais do que isso, a inevitável realidade de que o pior está sempre à frente, dão o tom da primeira metade da jogatina. É o tempero necessário para acompanhar a atualização gráfica e de conceitos, e que caminha lado a lado com a ideia de que a cidade e o incidente em si estão nos contando uma história e nos levando para onde querem tanto quanto a própria trama.
Aqui, é importante dedicar um tempo para falar de Nemesis, um aspecto simplesmente genial do game original e que acabou transportado para este remake com brilhantismo semelhante. É ele a sombra que paira durante toda a fuga final de Jill Valentine, como o título original costumava chamar, e é ele que protagoniza algumas das cenas mais impressionantes do game e, também, os momentos de perseguição intensos nos quais o jogador não está assistindo, e sim, absolutamente tenso e tentando fugir desesperadamente.
Mesmo bem armado e equipado com itens de cura, a primeira reação do jogador, sempre, será correr do monstro. Ainda que mantenha a calma e saiba o que fazer, jogando pela segunda ou terceira vez (e ainda que o game não tenha um fator replay lá muito elevado), o instinto de sobrevivência sempre nos indicará a fuga como o melhor caminho. Isso é feito por meio de sons e imagens, como no original, bem como jump scares bem aplicados, ainda que motivados por “cheats” gráficos como uma aceleração na contagem de frames do monstro, dashes supersônicos ou teleportes repentinos.
No meio dessa fuga, os próprios protagonistas ganham um pouco mais de corpo, principalmente, pelo fato de já serem conhecidas dos fãs. O começo, por exemplo, é inusitado e traz o caos para os olhos dos jogadores sem massagem, já que apresentação não são necessárias em um mundo, teoricamente, já conhecido. Personagens secundários como Brad, os mercenários da Umbrella, a própria empresa e até mesmo o Nemesis ganham contornos adicionais que levam a trama original adiante.
O exagero toma conta da segunda metade do jogo, com a Capcom parecendo acreditar que monstros gigantes e cutscenes com explosões serviriam para refrescar as coisas após os trechos na cidade.
Chega a ser curioso, então, o acerto em um elemento tão mais sutil e cheio de aspectos, como o Nemesis, e os problemas em pontos teoricamente mais simples, como os eventos da trama e as situações icônicas que os fãs cansaram de reviver ao longo das últimas duas décadas. Na reimaginação de Resident Evil 3, a Capcom realiza mudanças que, com certeza, não vão agradar aos fãs, enquanto minimiza a força de momentos centrais da experiência original e ainda deixa de lado alguns de seus elementos clássicos de forma bem questionável.
Sobre esse ponto, não podemos falar em detalhes, mas é possível comentar sobre o maior problema dessa reimaginação, que o diferencia não apenas do original como também de seu antecessor: a aparente falta de cuidado com o material original, visível e perene, principalmente, na segunda metade deste remake.
Resident Evil 2 mostrou o carinho de seus produtores com o material original e, acima de tudo, com o clima de desolação que fazia da saga de Leon e Claire uma das mais icônicas da história dos games, mesmo que o trabalho não tenha sido perfeito em termos de enredo e apresentasse quebras até mesmo na própria cronologia. Nesta continuação, infelizmente, não é possível sentir o mesmo cuidado, principalmente quando saímos do centro de Raccoon City e seguimos para outras áreas da cidade.
Mesmo aqueles que não são aficionados pela franquia devem se lembrar de alguns trechos icônicos do Resident Evil 3 original. Estes, mas principalmente os fãs, devem se incomodar bastante com o potencial desperdiçado de cenas que poderiam ter um andamento completamente diferente, enquanto cenários icônicos são subaproveitados ou simplesmente deixados de lado em prol de novas ideias que não são realmente boas para compensar isso. Há uma bela quantidade de referências, brincadeiras e easter eggs, que são interessantes mas soam como meros detalhes em um todo desastrado.
O exagero toma conta da segunda metade do jogo, com a Capcom apostando na absurdez como forma de fisgar o jogador. Talvez por imaginar que a perseguição constante de Nemesis possa cansar, ou simplesmente por acreditar que monstros gigantes, correria e grande cenas absolutamente infladas e previsíveis são artimanhas do horror, muitos dos conceitos firmados com maestria na primeira parte acabam arruinados e desfigurados.
Nemesis é transportado para o remake de forma magistral, com novas armas e habilidades, mas mantendo a sensação de que, não importa o quanto o jogador esteja preparado, fugir sempre será a melhor ideia.
A segunda metade traz momentos de tensão que acabam transformados em um modo horda cheio de recursos, o que esvazia qualquer terror, ou uma repetição de conceitos que até explica pontos estranhos do original, mas funciona de forma enfadonha. Assim, Resident Evil 3 acaba deixando de lado bases sólidas para investir em um final insosso, com o que é citado como um dos momentos mais impactantes da franquia se tornando um mero encerramento com direito, ainda, a uma quebra na personalidade da personagem principal.
É quase como se estivéssemos diante de dois jogos bem diferentes, mas feitos a partir de uma mesma forma. Seja por um tempo de desenvolvimento supostamente curto ou uma vontade de capitalizar na antecipação causada pelos remakes, aspectos internos que não temos como precisar, o sentimento ao final de Resident Evil 3 é de decepção, não pelo fato de este ser um game ruim, o que não seria justo dizer, mas pela constatação de que a barra de qualidade erguida pelos dois últimos lançamentos da franquia não foi mantida.
Visitar Raccoon City novamente é incrível, sim, como encontrar Jill Valentine em sua melhor forma e ver o desastre com um realismo e brutalidade nunca antes demonstrados na franquia. O problema está no restante.
O jogo foi analisado no PS4, em cópia cedida pela Capcom. Esta análise também foi publicada no Canaltech.