O mundo lá fora é opressor, mas não tem problema, você até que já está acostumado com ele. O equipamento de proteção nem incomoda tanto assim e você segue suas tarefas diárias na solidão em sua pequena casa, levando um dia após o outro, esperando sabe lá o que. Uma mudança vem, mas não na forma tranquila esperada, mas na de grandes cristais de gelo que antecipam uma era sombria pela frente. E assim, sua única opção se torna seguir para as profundezas, como o título do jogo indica.
Uma obra um tanto particular da Capcom, Shinsekai: Into the Depths destoa da lista usual de lançamentos da empresa, sempre focada em grandes franquias e, nos últimos anos, no realismo extremo proporcionado pelo motor gráfico RE Engine. Lançado no auge dessa onda, e de forma exclusiva no serviço Apple Arcade, o título traz, ao mesmo tempo, um comportamento inusitado e, também, a força a que a companhia nos acostumou na história recente.
Shinsekai: Into the Depths tem o mistério e a exploração submarina como principais atrativos, um game desenvolvido por grandes nomes da Capcom e que merecia mais atenção da empresa.
Estamos falando de um jogo com cara de independente e desenvolvido por uma equipe pequena, mas só em número de pessoas mesmo. Encabeçando a produção estão Peter Fabiano, do remake de Resident Evil 3, e Yoshiaki Hirabayashi, da reimaginação do segundo game da série de terror, com direção criativa de Shuuichi Kawata, com experiência que vai de Tenchu e Lost Planet a Resident Evil 4.
Um time de grandes nomes em um projeto completamente intimista e intrigante. Chega a soar esquisito que um projeto com tamanha qualidade e com tanta gente célebre tenha recebido um tratamento quase discreto por parte da Capcom, mesmo depois de ser anunciado para o Nintendo Switch cerca de um semestre depois de sua chegada ao Apple Arcade. Bom, pois muita gente poderá ter acesso ao jogo agora, mas ruim, pois Shinsekai: Into the Depth é muito maior do que sua divulgação dá a entender.
O game nos coloca no controle do Aquanaut, um personagem sem nome próprio que vive em uma terra inundada. Resquícios da humanidade aparecem no fundo e nos equipamentos que o protagonista tem à disposição enquanto seguimos sobrevivendo em um ambiente altamente inóspito, no qual os animais marinhos retomaram seu controle sobre as águas e tudo pode ser uma ameaça, desde ficar parado em uma rocha consumindo oxigênio até uma corrida desesperada para fugir de uma criatura.
O contato em primeira mão com os perigos do mar aparece na jogabilidade, em que nada pode ser impensado. Saltos altos demais causam dano de queda e o oxigênio está sempre sendo consumido, principalmente quando você usar o propulsor para amortecer a queda ou acelerar uma fuga. Ninguém vai ouvir você gritar enquanto se afoga nas profundezas de um game que nos convida a seguir cada vez mais abaixo em busca de novos elementos e, também, de perigos crescentes.
Shinsekai assume o bom e velho estilo Metroidvania, mas com uma abordagem bem mais amigável. Existem inúmeros caminhos a seguir e cavernas para explorar, mas um objetivo sempre estará à vista, de forma que o jogador possa se preparar para a distância a ser trafegada e, também, imaginar o que possa estar adiante. A coisa fica séria, entretanto, quando percebemos a verdade: não sabemos, e como jogadores, parecemos estar em uma posição desinformada, apesar de controlando um protagonista que parece ter vivência nesse mundo subaquático.
Felizmente, itens estão espalhados por todo o caminho, assim como pontos de save e, mais importante de tudo, upgrades. As melhorias permitirão que o Aquanaut explore cada vez mais fundo e esteja melhor preparado para o combate e a exploração, principalmente durante as batalhas contra chefes, único desafio ofensivo de verdade no título. No restante do tempo, lidaremos com o terreno e as criaturas, que podem até serem fracas ou representarem obstáculos já conhecidos e enfrentados antes, mas que podem ganhar em cima do usuário de forma extremamente rápida. Basta um vacilo.
Logo de início, o jogador será convidado a jogar Shinsekai: Into the Depths com bons fones de ouvido, e acredite, eles vão fazer diferença. Além dos gráficos ao mesmo tempo fotorrealistas e lúdicos, que trazem cor e indícios do passado a esse mundo inundado, o som ajudará e muito na sensação de clausura e solidão, com uma trilha sonora que não serve como som ambiente, e sim, vem para pontuar os momentos de tensão e dificuldade. No restante, é apenas o barulho do mar, mas não na forma da brisa tranquila a que estamos acostumados, mas sim, com uma sufocante pressão.
Um outro indício de que esse mundo é o nosso, mas não exatamente, aparece nas ferramentas e armas disponíveis. Existem arpões, tubos de oxigênio e elementos comuns em esportes submarinos, mas ao mesmo tempo, drones e submarinos futuristas, junto com histórias que são encontradas aqui e ali para contar a saga da devastação e destruição, revelando tudo por meio de imagens sem texto, com letras e números, aqui, meramente descritivos. Tudo faz questão de mostrar ao jogador que, por mais que seja reconhecível, tem seu funcionamento próprio.
Nesse caminho, entretanto, a Capcom acaba cometendo alguns deslizes. Ao confiar completamente em desenhos nem sempre inteligíveis na interface de usuário, Shinsekai acaba por frustrar o jogador em suas horas iniciais, em que ele não sabe exatamente onde pisar e o que deve fazer. Os tutoriais confiam em uma estranha mistura de textos comuns e símbolos, que atrapalham no entendimento e tornam as coisas um pouco mais confusas do que deveriam ser. É claro, dá para compreender o motivo, mas o fato de a proposta lúdica não ter sido levada até o final depõe contra ela mesma.
O mesmo também vale para os cenários, sempre belos e cheios de elementos para ver e explorar, mas também escondendo armadilhas e golpes baixos contra o jogador. Dá para argumentar, aqui, que os perigos podem estar escondidos, mas muitas vezes, o que temos é animais que já enfrentamos antes ou elementos danosos que acabam ofuscados por outros itens visuais, impedindo que o usuário tome o devido cuidado e perceba o que está acontecendo apenas depois de perder energia valiosa.
Seguir adiante nesse universo e, principalmente, o entender enquanto sobrevive, acaba sendo o grande atrativo de Shinsekai: Into the Depths, um jogo menor que, ainda em 2019, continuava a recentemente quebrada sequência de lançamentos excelentes da Capcom. Entender exatamente o que aconteceu em seu lançamento é complicado, assim como compreender os detalhes desse mundo subaquático. Estamos diante de um game que, inclusive, merecia mais, e chega a ser inexplicável a divulgação tão discreta, contrastando com os nomes de peso envolvidos.
Não apenas isso, mas a qualidade, em si, também é grande, tanto quanto a escuridão do mar cada vez mais profundo e das ameaças que crescem de tamanho. O formato menor foge do usual quando pensamos na empresa japonesa, mas aqui, mais uma vez, está presente a qualidade que a levou ao panteão do mercado de jogos e que todos nós aprendemos a apreciar.
O jogo foi testado no Switch, em cópia cedida pela Capcom.